quinta-feira, dezembro 31, 2015

Quando 2016 nascer, não façam desta vida um estandarte, nem acenem para ele com esperanças de melhores tempos.

Quem garante?
Adaptado de  Alex Polari

quarta-feira, dezembro 30, 2015

Crise e por isso não temos como suprir as necessidades do povo, mas penso que não há sentido na nossa miséria. Fome não é prova de fortaleza, é apenas não ter comido! Esforço não é vergar as costas e arrastar, não é mérito!
A miséria não é condição das virtudes, meus amigos! E não me venham com a beleza das riquezas que fomos capazes de produzir!
Se a nossa gente fosse abastada e feliz, aprenderia as virtudes da abastança e da felicidade. Mas hoje, as virtudes dos pobres nascem... da pobreza!
Eu abomino isso! Sim, abomino! Ou vocês querem que eu minta a nossa gente?
Bertolt Brech

terça-feira, dezembro 29, 2015

Provisoriamente não cantaremos o amor,
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços...
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, e medo das mães, e medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nosso túmulos nascerão flores
amarelas e medrosas.
Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, dezembro 28, 2015

Nada é mais perigoso do que a certeza de ter razão, é preciso refletir tendo a dúvida como companheira.
Quando há um progresso do seu autoconhecimento, é sempre uma má notícia.
Uma das maiores descobertas do século XX foi a da agressiva estupidez com que se comporta um homem quando sabe muito de alguma coisa e ignora todas as demais, ou seja, a especialização é imoral.

domingo, dezembro 27, 2015

Todas as palavras esdrúxulas, como os sentimentos esdrúxulos, são naturalmente ridículas.
  Álvaro de Campos

sábado, dezembro 26, 2015

A alma humana é um manicômio de caricaturas. Se uma alma pudesse revelar-se com verdade, nem houvesse um pudor mais profundo que todas as vergonhas conhecidas e definidas, seria, como dizem da verdade, um poço, mas um poço sinistro cheio de ecos vagos, habitado por vidas ignóbeis, viscosidades sem vida, lesmas sem ser, ranho da subjetividade. Eis a alma.
Bernardo Soares

sexta-feira, dezembro 25, 2015

                                                       Povo e o Brasil
O Brasil ainda tem sorte de ser povo talvez, porque povo é uma palavra com eco. Todo mundo usa essa palavra, mas ninguém sabe direito. Mas eu posso dizer a vocês que a passageira do meu lado, viúva, 60 anos, tem dois gatos de que gosta e dois netos de que não. Os gatos ela comanda, os netos é uma batalha. Sobre este mundo e o outro sabe tudo, ela vê televisão. O país não tem remédio, ninguém tem mais trabalho, os que tem não querem trabalhar, os políticos só roubam, nem vale a pena falar. Aproveita e volta ao sério: sério para ela são as telenovelas, então ela fala sem parar. Ela fala de Big Brother, ela fala da Fazenda, ela fala do Raul Gil, ela fala do povo brasileiro. A passageira do lado é o passageiro em geral, o povo. O louvado povo por discursos e jornal. Há que começar do ovo, porque alguma coisa andou mal.
Então é Natal.

quinta-feira, dezembro 24, 2015

Para Marcel Proust, a maioria considera claras as ideias que estejam tão confusas quanto as suas.
Para Anatole France, uma besteira dita por milhões de bocas não deixa de ser uma besteira.
Para Schiller, o bom senso tem sido de poucos, seria bom pesar os votos, ao invés de contá-los.
Para  Ideilson, a vida só é valida se cada dia nascemos de novo.  

Feliz Natal

quarta-feira, dezembro 23, 2015

O que me basta?
A princípio bastaria ter saúde, dinheiro e amor, o que já é um pacote louvável, mas nossos desejos são ainda mais complexos. Não basta que a gente esteja sem febre: queremos, além de saúde, ser magérrimos, sarados, irresistíveis. Dinheiro? Não basta termos para pagar o aluguel, a comida, o cinema, o teatro: queremos a piscina olímpica e uma temporada num spa cinco estrelas. E quanto ao amor? Ah, o amor... não basta termos alguém com quem podemos conversar, dividir uma pizza e fazer sexo de vez em quando. Isso é pensar pequeno: queremos AMOR, todinho maiúsculo. Queremos estar visceralmente apaixonados, queremos ser surpreendidos por declarações e presentes inesperados, queremos jantar a luz de velas de segunda a domingo, queremos sexo selvagem e diário, queremos ser felizes assim e não de outro jeito. É o que dá ver tanta televisão. Simplesmente esquecemos de tentar ser felizes de uma forma mais realista. Ter um parceiro constante pode ou não, ser sinônimo de felicidade. Você pode ser feliz solteiro, feliz com uns romances ocasionais, feliz com um parceiro, feliz sem nenhum. Não existe amor minúsculo, principalmente quando se trata de amor-próprio. Dinheiro é uma benção. Quem tem, precisa aproveitá-lo, gastá-lo, usufruí-lo. Não perder tempo juntando, juntando, juntando. Apenas o suficiente para se sentir seguro, mas não aprisionado. E se a gente tem pouco, é com este pouco que vai tentar segurar a onda, buscando coisas que saiam de graça, como um pouco de humor, um pouco de fé e um pouco de criatividade. Ser feliz de uma forma realista é fazer o possível e aceitar o improvável. Fazer exercícios sem almejar passarelas, trabalhar sem almejar o estrelato, amar sem almejar o eterno. Olhe para o relógio: hora de acordar. É importante pensar-se ao extremo, buscar lá dentro o que nos mobiliza, instiga e conduz, mas sem exigir-se desumanamente. A vida não é um jogo onde só quem testa seus limites é que leva o prêmio. Não sejamos vítimas ingênuas desta tal competitividade. Se a meta está alta demais, reduza-a. Se você não está de acordo com as regras, demita-se. Invente seu próprio jogo. Faça o que for necessário para ser feliz. Mas não se esqueça que a felicidade é um sentimento simples, você pode encontrá-la e deixá-la ir embora por não perceber sua simplicidade. Ela transmite paz e não sentimentos fortes, que nos atormenta e provoca inquietude no nosso coração. Isso pode ser alegria, paixão, entusiasmo, mas não felicidade.
 Martha Medeiros

terça-feira, dezembro 22, 2015

 Viajar! Perder Países

Ser outro constantemente

Por a Alma não ter raízes

De viver de ver somente


Não pertencer nem a mim

Ir em frente, Ir a seguir

A ausência de ter um fim

E da ânsia de o conseguir


Viajar assim é viagem

Mas faço-o sem ter de meu

Mais que o sonho da passagem

O resto é só terra e céu


Fernando Pessoa

segunda-feira, dezembro 21, 2015

Se eu soubesse algo que me fosse útil, mas prejudicial à minha família, eu rejeitaria. Se eu soubesse algo que fosse útil à minha família, mas prejudicial ao meu país, eu esqueceria. Se eu soubesse algo que fosse útil ao meu país, mas prejudicial à humanidade, eu consideraria esse algo um crime.
 Charles de Montesquieu

domingo, dezembro 20, 2015

E depois de fazer tudo o que fazem, levantam-se, tomam banho, cobrem-se de talco, perfumam-se, penteiam-se, vestem-se, e assim progressivamente vão voltando a ser o que não são.
Julio Cortázar

sábado, dezembro 19, 2015

O que vocês esperavam que acontecesse quando tiraram a mordaça que tapava essas bocas negras? Esperavam que elas lhes lançassem louvores? E essas cabeças que seus avós e seus pais haviam dobrado à força até o chão?
O que esperavam? Que se reerguessem com adoração nos olhos?
Ei-los em pé. Homens que nos olham. Ei-los em pé. Faço votos para que vocês sintam como eu a comoção de ser visto.
Hoje, esses homens pretos nos miram e nosso olhar reentra em nossos olhos. Tochas negras iluminam o mundo e nossas cabeças brancas não passam de pequenas luminárias balançadas pelo vento.
 Jean-Paul Sartre

sexta-feira, dezembro 18, 2015

Já somos o esquecimento que seremos, a poeira elementar que nos ignora, não foi Adão e que é agora todos os homens. Nós somos apenas as duas datas: a do princípio e a do fim. Eu não sou o insensato que se aferra ao mágico som de seu próprio nome. Eu penso com esperança naquele homem que não saberá o que eu fui sobre a terra. Em baixo do indiferente azul do céu, esta meditação é um consolo.
Jorge Luis Borges

quinta-feira, dezembro 17, 2015

Que existe mais, senão afirmar a multiplicidade do real?
A igual probabilidade dos eventos impossíveis?
A eterna troca de tudo em tudo?
A única realidade absoluta?
Seres se traduzem.
Tudo pode ser metáfora de alguma outra coisa ou de coisa alguma.
Tudo irremediavelmente metamorfose!
Paulo Leminski

quarta-feira, dezembro 16, 2015

A criança come o barro pensando comer o ovo. Diz a gente grande: é verme. Não, é fome. A cena se repete, e ela pode comer o descampado inteiro. Uma besta rosnando quieta, babando como cão raivoso.Andemos por esse pátio ausente de morangos. Dividamos nossas fomes, bebamos nossos próprios sangues. A cidade é de Deus, aqui nunca é outono. Nem Bob Esponja faz rir o lábio do menino que descasca. Frieza no sol a pino de quarenta graus. Amamentemos de fúria a ética inventada pelo homem. Pois “cuspe” é a palavra inventada para engolir a seco a mosca que nos tornamos nós!
Araripe Coutinho

terça-feira, dezembro 15, 2015

Por quantas impossíveis geografias

Ainda permaneceremos exilados na fronteira do equívoco

Mesmo nos sabendo vizinhos de terras devolutas?

 Ézio Deda

segunda-feira, dezembro 14, 2015

Esta estrada onde eu moro, entre duas voltas do caminho,
Interessa mais que uma avenida urbana.
Nas cidades todas as pessoas se parecem.
Todo mundo é igual. Todo mundo é toda a gente.
Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua alma.
Cada criatura é única. Até os cães.
Estes cães da roça até parecem homens de negócios:
Andam sempre preocupados.
E quanta gente vem e vai!
E tudo tem aquele caráter impressivo que faz meditar:
Enterro a pé ou a carrocinha de leite puxada por um bodezinho manhoso.
Nem falta o murmúrio da água, para sugerir, pela voz dos símbolos,
Que a vida passa! Que a vida, a vida passa!
E que a mocidade vai acabar.
 Manuel Bandeira

domingo, dezembro 13, 2015

Texto de ontem 1926, mas serve muito para hoje.

Eu ouço as vozes eu vejo as cores eu sinto os passos de outro Brasil que vem aí
mais tropical mais fraternal mais brasileiro.
O mapa desse Brasil em vez das cores dos Estados
terá as cores das produções e dos trabalhos.
Os homens desse Brasil em vez das cores das três raças terão as cores das profissões e regiões.
As mulheres do Brasil em vez das cores boreais terão as cores variamente tropicais.
Todo brasileiro poderá dizer: é assim que eu quero o Brasil todo brasileiro e não apenas o bacharel ou o doutor o preto, o pardo, o roxo e não apenas o branco e o semibranco.
Qualquer brasileiro poderá governar esse Brasil Lenhador, lavrador, pescador, vaqueiro, marinheiro, funileiro, carpinteiro contanto que seja digno do governo do Brasil
que tenha olhos para ver pelo Brasil, ouvidos para ouvir pelo Brasil coragem de morrer pelo Brasil ânimo de viver pelo Brasil mãos para agir pelo Brasil mãos de escultor que saibam lidar com o barro forte e novo dos Brasis mãos de engenheiro que lidem com tratores europeus e norte-americanos a serviço do Brasil mãos sem anéis (que os anéis não deixam o homem criar nem trabalhar).
mãos livres, mãos criadoras, mãos fraternais de todas as cores mãos desiguais que trabalham por um Brasil sem Azeredos, sem Irineus, sem Maurícios de Lacerda.
Sem mãos de jogadores nem de especuladores nem de mistificadores.
Mãos todas de trabalhadores, pretas, brancas, pardas, roxas, morenas, de artistas, de escritores, de operários, de lavradores, de pastores de mães criando filhos, de pais ensinando meninos de padres benzendo afilhados de mestres guiando aprendizes de irmãos ajudando irmãos mais moços de lavadeiras lavando de pedreiros edificando de doutores curando de cozinheiras cozinhando de vaqueiros tirando leite de vacas chamadas comadres dos homens.
Mãos brasileiras brancas, morenas, pretas, pardas, roxas tropicais sindicais fraternais.
Eu ouço as vozes eu vejo as cores eu sinto os passos desse Brasil que vem aí.


Gilberto Freyre

sábado, dezembro 12, 2015

Li num texto sobre o Enrico Fermi, o físico italiano que foi um dos pais da bomba atômica. Um dia resolveu fazer uma alteração no processo que usava para induzir a radioatividade usando neutrons (ou coisa parecida, sou meio fraco em física, na verdade sou contra).

O chumbo não estava dando certo, em vez de chumbo usaria outra coisa. Parafina, decidiu, sem pensar. Foi a decisão mais importante da sua vida, até ali. A colisão com o núcleo de hidrogênio da parafina fazia diminuir a velocidade dos neutrons, e todos sabem o que isso significa.

Espero que saibam, porque eu não sei. O importante é que os nêutrons vagarosos foram os responsáveis, pelo Prêmio Nobel que Fermi ganhou em 1938.

Ele era, segundo o texto, ‘o mais racional e o menos impulsivo dos cientistas’, mas escolhera a parafina num impulso. Tivera a intuição da parafina.

A história da ciência está cheia de sacadas do mesmo tipo, de manifestações do que outro cientista, Michael Polanyi, chama de ‘conhecimento tácito’, ou o que nós sabemos sem saber que sabemos.

Albert Einstein – outro que intuiu e ‘inventou’, muito mais do que deduziu racionalmente ele dizia que tinha um sentimento na ponta dos dedos, que substitui a percepção convencional e a racionalização.

Muitas vezes é a ponta dos dedos que sabe o que nós não sabemos que sabemos. Einstein, aparentemente, consultava a ponta dos seus dedos com frequência.

Tudo isto a respeito de que? Não sei. Eu talvez esteja querendo dizer que se deva recorrer a ponta dos dedos para entender o que se passa na política brasileira hoje, já que os órgãos com que tradicionalmente se avalia a realidade nacional não estão dando conta.

Ou está havendo uma grande mudança disfarçada de nada ou um grande nada disfarçado de mudança. Por aí. Ou não. Se eu não sei nem o que sei, vou saber o que estou dizendo?
Luiz Fernando Veríssimo

sexta-feira, dezembro 11, 2015

Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
As ferozes televisões que mostram o mal

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino que chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o que há melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, dezembro 10, 2015

Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
É a circulação e o movimento infinito.
Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido.


Murilo Mendes

quarta-feira, dezembro 09, 2015

Entretidos em discutir a morte, anoiteceu e não acendemos a luz.
Não víamos o rosto um do outro.
Com doçura e sem fervor, a voz de Macedonio Fernandez repetia que a alma é imortal.
Garantia que a morte não é nada.
Morrer tinha que ser o menos importante que pode acontecer a um homem.
Eu, Jorge Luis Borges, brincava com a navalha de Macedonio: abria e fechava.
Um acordeom, numa casa vizinha, despachava "la cumparsita", essa choradeira infinita e consternada de que muita gente gosta porque inventaram que é velha.
Então, para podermos continuar discutindo em paz a imortalidade, propus a Macedonio que nos suicidássemos.
Francamente, não lembro se nos suicidamos naquela noite.


Jorge Luis Borges



Revestindo uma couraça de raios laser à prova de bazucas, não ouve o clamor dos pais da pátria, ignora a biblioteca de Jefferson, ele próprio, arquiteto de sua mansão numa época em que se chegou a pensar em adotar o grego clássico, em vez do inglês, como idioma da nova república que antecipou a revolução francesa, que inspirou os libertadores da hispano-américa e os inconfidentes de Minas.

O megamacrosuperherói do bem não está interessado em ouvir mais nada. Nem repara quando Martin Luther King apresenta afro-condolências a uma afro-americana condoleezza verde-hira
ferrúgeo-parda como a estátua da liberdade vista de perto.

O supermacromegacowboy vestido de "mariner" chegou ao limite. Seus olhos azuis são um frio risco de aço: basta de ônus onerosas e inoperosas!
Basta de franceses amolecidos e decadentes e de alemães desleais!

Vênias dadas ao trêfego blair e aos dois porta-vozes de eurodireita: o asinino Aznar, ostentando as medalhas do generalíssimo, e o mafioso Berlusconi, com bufos esgares de Mussolini.

Os dois olhos azuis são agora um único risco de aço.

O dedo no comando está prestes a apertar o botão. O ar tem um ataque cardíaco.

A primeira bomba, como um ovo de assombro, tomba lá onde foi o Zigurat de Babel, ali onde a rainha Semíramis passava tardes amenas e odorantes em seus jardins suspensos.
 Haroldo de Campos

terça-feira, dezembro 08, 2015

Não vou deixar me embrutecer..
O general só tem oitenta homens, e o inimigo, cinco mil. Em sua tenda o general blasfema e chora. Então escreve uma ordem do dia inspirada, que pombos correios espalham sobre o acampamento inimigo. Duzentos soldados inimigos mudam de lado a favor do general. Segue-se uma escaramuça, que o general vence facilmente, e mais dois regimentos inimigos se passam para o seu lado. Agora o inimigo tem oitenta homens e o general cinco mil. Então o general escreve outra ordem do dia e setenta e nove homens passam para o seu lado. Só resta um inimigo, cercado pelo exército do general, que o aguarda em silêncio. Transcorre a noite e o inimigo não passou para o seu lado. O general blasfema e chora em sua tenda. Ao amanhecer o inimigo desembainha lentamente a espada e avança em direção a tenda do general. Entra e olha pra ele. O exército do general debanda e o sol começa a surgir.
 Júlio Cortázar

segunda-feira, dezembro 07, 2015

Morte de fumante... - 22/07/2001


Isso não foi amplamente divulgado

Vejam o que saiu no jornal há poucos dias: Morte de fumante ajuda economia, diz Philip Morris. A companhia americana de cigarros disse ao governo da República Tcheca que a morte prematura de fumantes por câncer tem um impacto positivo nas finanças do país. Segundo a Philip Morris a cada fumante morto o governo deixa de gastar dinheiro na área de saúde e livra-se de pagar aposentadoria. Além disso, o morto abre uma vaga no mercado de trabalho em favor de um desempregado. Essa talvez seja a maior e mais cínica provocação dos últimos e dos próximos anos! Ou será que eles estão certos? Será que é preciso morrer pra resolver as coisas? Bem, tem outra provocação: o espaço tão pequeno que os jornais e a TV abriram para esse assunto.

Mas o Blog do Ideilson tem memoria.

domingo, dezembro 06, 2015

A velhice

Eu cheguei ao limite de minhas capacidades intelectuais
Eu percebo que poderei perdê-las a qualquer momento
Além disso, eu perdi muita gente querida, amigos e parentes
Eu, que tive uma atividade de reflexão, estudo e ensino, rodeado de pessoas que amava, eu me vejo cada vez mais solitário
Quando vivemos uma crise assim, a sabedoria vai embora e perdemos o rumo de nossas reflexões
De que valeram os 31 livros que eu publiquei. O que  sobra de tudo que a gente aprendeu no momento limite. Eu sai a procura de um tipo de sabedoria que me ajudasse a suportar a velhice. Compreendê-la com serenidade
Eu só encontro consolo quando eu recito baixinho, para mim mesmo, os poemas que sei de cor
A repetição é uma forma arcáica de conhecimento, mas é eficaz, quando se vive num momento de domínio da tecnologia e do consumismo.
É repetindo esses poemas que eu aprendo coisas importantes sobre mim próprio


Harold Bloom

sábado, dezembro 05, 2015

O céu está nas nuvens. Altas passam as nuvens.
Ninguém as possui. Ninguém!

Podes vender-me um dólar de água da fonte?
Um nuvem grávida, crespa e suave como uma ovelha?
Ou, quem sabe, água chovida das montanhas, água dos charcos?
Água dos charcos, abandonada aos cães?
Ou uma légua de mar, talvez um lago?

A água cai e corre. A água corre. Passa.
Ninguém a possui. Ninguém.

Podes vender-me terra?
A profunda noite das raízes, dentes de dinossauros,
A cauda espessa de longínquos esqueletos?
Podes vender-me selvas já sepultadas, aves mortas,
Peixes de pedra, enxofre dos vulcões,
Milhões e milhões de anos em espiral crescendo?

Podes vender-me terra?
Podes vender-me?
Podes?

A tua terra é terra minha, todos os pés se apoiam nela.
Ninguém a possui. NINGUÉM!


Nicolás Guillén

sexta-feira, dezembro 04, 2015

Eu salto de telhado em telhado
E com enorme rede de borboletas
Eu caço tecnocratas, caço burocratas
Eu mostro aos alunos
Junto com dinossauros
Gigantossauros, tiranossauros
Que descem obedientes
Pelas paredes da sala de aula
Vasko Popa

quinta-feira, dezembro 03, 2015

Poesia é uma coisa muito rara.
A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.

Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? o amor?
Não diga nada.

Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.

Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem, perdão.
Não peça.

Carlos Drummond de Andrade


quarta-feira, dezembro 02, 2015

Escrever, pense....E S C R E V E R
Para que a escrita seja legível,
é preciso exercitar a mão,
e conhecer todos os caracteres.
Mas para começar a dizer
alguma coisa que valha a pena,
é preciso conhecer todos os sentidos
desses os caracteres,
e ter experimentado em si próprio
todos esses sentidos,
é ter observado no mundo
e no transmundo
todos os resultados que se experimentou.
Cecília Meireles

terça-feira, dezembro 01, 2015

É tão depressa dia e nada nos redime
Alguém não despertou ficou na noite
Vieram de manhã uns homens que varreram
a restante alegria destas ruas
A criança na roda entoará:
estão hoje fundos os pássaros
estão hoje fundos os pássaros
quem no-los tirará de lá?
Tão vasta como o mar a nossa dor
alguém nos poupará de nela naufragar?
Ruy Belo

segunda-feira, novembro 30, 2015

Parece cocaína mas é só tristeza, talvez tua cidade
Muitos temores nascem do cansaço e da solidão
E o descompasso e o desperdício herdeiros são
Agora da virtude que perdemos

Há tempos tive um sonho, não me lembro
não me lembro

Tua tristeza é tão exata
E hoje o dia é tão bonito
Já estamos acostumados
A não termos mais nem isso

Os sonhos vêm e os sonhos vão
O resto é imperfeito

Disseste que se tua voz tivesse força igual
À imensa dor que sentes
Teu grito acordaria
Não só a tua casa
Mas a vizinhança inteira

E há tempos nem os santos têm ao certo
A medida da maldade
Há tempos são os jovens que adoecem
Há tempos o encanto está ausente
E há ferrugem nos sorrisos
E só o acaso estende os braços
A quem procura abrigo e proteção

Meu amor, disciplina é liberdade
Compaixão é fortaleza
Ter bondade é ter coragem
Lá em casa tem um poço
mas a água é muito limpa

domingo, novembro 29, 2015

Eu nunca sei quando as histórias acabam. Por isso sempre fico preso entre uma e outra, ou entre nenhuma e nenhuma outra; entre um recomeço sem fim e um fim sem término.
Talvez por ser mais espectador ou coadjuvante, do que protagonista da minha vida, tenha essa enfermidade de não dar conta de quando baixa o pano. As luzes apagam, o público sai, os colegas limpam a maquiagem e eu continuo lá: com a fala na cabeça, o texto decorado, aguardando a deixa. A deixa que nunca vem.
Sempre tive medo das coisas e das pessoas. Um pavor e uma falta de fé.Ttalvez por isso eu tenha criado minha própria companhia teatral, onde sou diretor; contra-regra; atores e público. Enceno só para mim uma tragicomédia.
A realidade me faz tão mal e me deixa tão fraco que fico, no fundo do palco, muitas vezes, a sussurrar o texto a mim mesmo. Às vezes não ouço. Quase sempre não ouço, porque sussurro baixo e minha voz é trêmula… O público não entende a peça, logo, não aplaude.
Eu, furioso, demito a todos: ao autor; ao diretor; aos atores… expulso o público do teatro e ateio fogo a tudo. E ali dentro fico eu, junto às cortinas e aos holofotes, incandescentes; queimando, queimando, queimando…

sábado, novembro 28, 2015

Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud! Teus dezoito anos refratários à amizade, à maledicência, à tolice dos poetas de Paris, bem fizeste em dispersá-lo pelo vento do largo, de lançá-los ao gume da sua precoce guilhotina. Tiveste razão em abandonar o boulevard dos preguiçosos, o bom dia dos simples. Este pulso absurdo do corpo e da alma, esta bala de canhao que atinge o alvo e o explode. Sim, está é a vida de um homem.
René Char

sexta-feira, novembro 27, 2015

Eu sou como um circo de lonas estragadas
Onde o palhaço já não faz mais rir
Onde o trapézio há muito está parado
porque o medo foi morar ali.
Eu sou como um circo de lonas estragadas
Em que a banda já não quer tocar
Onde as jaulas se restaram abertas
porque nem bicho se deixou ficar.
Eu sou como um circo de lonas estragadas
Sem ter mais público para aplaudir
Temendo aqueles que atiram facas
Temendo tudo que lhe quer ferir.
Eu sou como um circo de lonas estragadas
Sem alegria qualquer, sem emoção.
No entanto, existe aquela corda bamba
Onde balança o meu coração. 
Mabel Veloso

quinta-feira, novembro 26, 2015

O mundo é um pensamento encadeado. Quando algo se consolida, os pensamentos libertam-se. Quando algo se desfaz, os pensamentos encadeiam-se.

Novalis

quarta-feira, novembro 25, 2015

Vivendo a mais de16 anos na Educação estava eu vendo as noticias sobre como anda as escolas no Brasil, lembrei de Hannah Arendt 

Todo aquele que se isolar da convivência política com as pessoas – por maior que seja sua força e por mais válidas que sejam suas razões - estará renunciando ao poder. Ou seja, estará se tornando impotente. Hannah Arendt.

Pergunto sem ter medo de ouvir a resposta, Onde esta a Liberdade?

terça-feira, novembro 24, 2015

Às vezes me perguntam como eu, escritor e roteirista, reajo ao poder das novas tecnologias que transformaram o mundo da palavra escrita. Eu me divirto inventando uma história que em meados do século XIX alguém pergunta a Gustave Flaubert, grande escritor, se a substituição das canetas com pena de ganso, pelas canetas com pena de metal mudou a literatura francesa. E faço Flaubert responder: acho que não, mas mudou a vida dos gansos

Jean-Claude Carrière

segunda-feira, novembro 23, 2015

Semelhanças? Mera coincidência.
Nós estamos perdidos há muito tempo...
O país perdeu a inteligência e a consciência moral.
Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada.
Os carácteres corrompidos.
A prática da vida tem por única direção a conveniência.
Não há princípio que não seja desmentido.
Não há instituição que não seja escarnecida.
Ninguém se respeita.
Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos.
Ninguém crê na honestidade dos homens públicos, ninguém!
Alguns agiotas felizes exploram.
A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia.
O povo está na miséria.
Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente.
O Estado é considerado na sua ação fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.
A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências.
Por toda parte dizem: “o país está perdido!”
Algum opositor do atual governo?... Não!
José Maria de Eça de Queirós (escrito em Portugal 1871)

domingo, novembro 22, 2015

Eu possuo mais o mundo em minha cabeça quando sou capaz de vê-lo em miniatura, pois só assim seus valores se condensam e enriquecem. Não basta uma dialética platônica do grande e do pequeno para conhecer as virtudes dinâmicas da miniatura.
É preciso ultrapassar a lógica para viver o que há de grande no pequeno.
Gaston Bachelard

sábado, novembro 21, 2015

Parem de jogar cadáveres na minha porta.
Tenho que sair– respirar.
Estou seguindo para os jardins de Allambra a ouvir o que diz a água daquelas fontes
e acompanhar o desenho imperturbável dos zeligs.
Não me venham com jornais sangrentos sob os braços.
Parem de roubar meu gado, de invadir meu teto e de semear pregos por onde passo.
Estou em Essauíra, na costa do Marrocos olhando o mar. Ou em Minas
contemplando as montanhas ao redor de Diamantina.
Não me tragam o odorento lixo da estupidez urbana.
Parem de atirar em minha sombra e abocanhar meu texto.
Estou tornando a Delfos naquela manhã de neblinas
ouvindo o que me diz o oráculo em surdina.
Ainda agora embarquei para o Palácio Topkapi frente ao Bósforo,
quando tentaram me esfaquear na esquina.
Jamais permitirei que quebrem as porcelanas e roubem a gigantesca esmeralda na real vitrina.
Não me chamem para a reunião de condomínio.
Estou nos campos da Toscana onde a gigante mão de Deus penteia os montes
e minha alma se sente pequenina.
Dei de mão comendas e insígnias não tenho mais que na praça erguer protestos
e distribuir esmolas não é mais a minha sina.
Acabo de entrar no Pavilhão da Harmonia Preservada e me liberto
– na Cidade Proibida na China.
Não adianta o clamor de burocráticos compromissos nem vossa ira. Tenho oito anos
saí para nadar naquele açude atrás dos morros e vou pescar a minha única e inesquecível traíra.
Parem de jogar cadáveres na minha porta na minha mesa na minha cama
dificultando que alcance o corpo da mulher que amo.
Afastem de mim o meu o vosso cálice.
Impossível ficar no tempo que me coube o tempo todo preciso repousar num campo de tulipas
reaprendendo a ver o que era o mundo antes de como um Sísifo moderno desesperado julgar
– que o tinha que carregar.
 Affonso Romano de Sant'Anna

sexta-feira, novembro 20, 2015

A crônica é um jeito que o brasileiro descobriu para fazer poesia à paisana, contos à paisana, romances à paisana. É um golpe civil. Crônica tem uma superficialidade enganosa: por ser curta e de temas prosaicos, parece que é inofensiva. Sua profundidade reside no tom baixo de amizade. Sua agressividade é a ternura. Escrever crônicas é fazer amizades, contar segredos e confidências, é ajudar verdadeiramente as pessoas a não se conformarem.
Fabrício Carpinejar

quinta-feira, novembro 19, 2015

Para que a escrita seja legível,
é preciso dispor os instrumentos,
exercitar a mão,
conhecer todos os caracteres.
Mas para começar a dizer
alguma coisa que valha a pena,
é preciso conhecer todos os sentidos
de todos os caracteres,
e ter experimentado em si próprio
todos esses sentidos,
e ter observado no mundo
e no transmundo
todos os resultados dessas experiências.
Cecília Meireles

quarta-feira, novembro 18, 2015

Duas Situações Interessantes: Quando o pensamento anda mais rápido que a língua, e quando a língua anda mais rápido que o pensamento! Qual é o pior? O pior é quando o pensamento e a linguagem andam na mesma marcha. Aí começa o tédio!...

Jean Baudrillard 

terça-feira, novembro 17, 2015

Também eu sou um homem mortal, igual a todos, filho do primeiro que a terra modelou, feito de carne, no seio de uma mãe, onde, por dez meses, no sangue me solidifiquei, de viril semente e do prazer, companheiro do sono.

Ao nascer, também eu respirei o ar comum.
E, ao cair na terra que a todos recebe igualmente, estreei minha voz chorando, igual a todos.

Criaram-me com mimo, entre cueiros.
Nenhum rei começou de outra maneira.
Idêntica é a entrada de todos na vida, e idêntica é a entrada de todos na saída.

segunda-feira, novembro 16, 2015

A poesia está guardada nas palavras - é tudo que
eu sei.
Meu fado é o de não entender quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não cultivo conexões com o real.
Para mim, poderoso não é aquele que descobre ouro,
Poderoso para mim é aquele que descobre as insignificâncias
do mundo e nossas.
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei muito emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.
 Manoel de Barros

domingo, novembro 15, 2015

Já me fizeram muitas vezes esta pergunta: "você quer destruir tudo, mas o que surgirá depois?" respondi com um trecho de um poema de Brecht:

"A parábola do Buda sobre a casa em chamas".

Buda disse: "uma casa estava pegando fogo. Havia gente lá dentro. Alguém gritou-me pela janela: como está o tempo aí fora? chovendo? ventando?

"Afastei-me sem responder"

sábado, novembro 14, 2015

Os impactos de amor não são poesia
O que é poesia, o belo? Não, o belo não é poesia,
E o que não é poesia não tem fala.
Nem o mistério em si nem velhos nomes
Poesia são: coxas, fúria, cabala.
De que se formam nossos poemas? Onde?
Que sonho envenenado lhes responde,
Se o poeta é um ressentido, e o mais são nuvens?
  Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, novembro 13, 2015

Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.

quinta-feira, novembro 12, 2015

A adolescência é um tribunal inesperado.
O julgamento do pai pelo filho.
O julgamento do filho pelo pai. Mas em alguns casos pode  surgir de repente um psicoterapeuta para impetrar um habeas corpus.
Paulo Mendes Campos

quarta-feira, novembro 11, 2015

Deus fez tudo a partir do nada.
Às vezes, o nada ainda aparece no meio do que ele fez.
Paul Valéry é filósofo, 

terça-feira, novembro 10, 2015

Não se espantem, meus amigos: tudo já foi dito alguma vez. Tudo. Mas como ninguém escuta, é preciso dizer de novo.
 André Gide

segunda-feira, novembro 09, 2015

Um dia, pensei: por que você não pensa em uma coisa que nunca pensou? Tinha um lago perto e sempre vinha um peixe que botava a cabeça do lado de fora. Havia gaivotas que mergulhavam no lago e tornavam a sair. Comecei a olhar aquilo e pensar: se o peixe saísse d’água, morreria afogado no ar, mas se a gaivota ficasse dentro da água, morreria afogada. Comecei a olhar os dois elementos da natureza – a água e o ar - e descobri uma coisa bonita: o peixe e o pássaro passam... Sem deixar rastro!
Bartolomeu Campos de Queirós

domingo, novembro 08, 2015

Senhores, senhoras, jovens, crianças ouçam uma belíssima verdade que as pessoas dizem quando tem um grande talento

"Vivemos num tempo de chantagem universal,
Que toma duas formas complementares de escárnio:
Há a chantagem da violência e a chantagem do entretenimento.
Uma e outra servem sempre para a mesma coisa:
Manter o homem simples longe do centro dos acontecimentos."
Ortega y Gasset

sábado, novembro 07, 2015

As pessoas pensam que os cientistas existem para instruí-las e que os artistas - os poetas, os escritores, os músicos, os dramaturgos – existem só para lhes dar prazer.Não ocorre às pessoas que também os artistas têm muita coisa a lhes ensinar.

Ludwig Wittgenstein

sexta-feira, novembro 06, 2015

O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.
A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói...
O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.
 Ricardo Reis

quinta-feira, novembro 05, 2015

O céu está nas nuvens. Altas passam as nuvens.
Ninguém as possui. Ninguém!
 Podes vender-me um dólar de água da fonte?
Um nuvem grávida, crespa e suave como uma ovelha?
Ou, quem sabe, água chovida das montanhas, água dos charcos?
Água dos charcos, abandonada aos cães?
Ou uma légua de mar, talvez um lago?
A água cai e corre. A água corre. Passa.
Ninguém a possui. Ninguém.
 Podes vender-me terra?
A profunda noite das raízes, dentes de dinossauros,
A cauda espessa de longínquos esqueletos?
Podes vender-me selvas já sepultadas, aves mortas,
Peixes de pedra, enxofre dos vulcões,
Milhões e milhões de anos em espiral crescendo?
Podes vender-me terra?
Podes vender-me?
Podes? 
A tua terra é terra minha, todos os pés se apoiam nela.
Ninguém a possui. NINGUÉM!
 Nicolás Guillén

quarta-feira, novembro 04, 2015

Mergulhar a palavra suja em água sanitária. Depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.
Algumas palavras quando alvejadas ao sol adquirem consistência de certeza. Por exemplo, a palavra vida.
Existem outras - e a palavra amor é uma delas - que são muito encardidas pelo uso, o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra, depois enxaguar em água corrente. São poucas as que resistem a esses cuidados, mas existem aquelas.
Dizem que limão e sal tiram sujeira difícil, mas nada. Toda tentativa de lavar a piedade foi sempre em vão. Agora nunca vi palavra tão suja como perda. Perda e morte, na medida em que são alvejadas, soltam um líquido corrosivo, que atende pelo nome de amargura, que é capaz de esvaziar o vigor da língua. O aconselhado nesse caso é mantê-las sempre de molho em um amaciante de boa qualidade. Agora, se o que você quer é somente aliviar as palavras do uso diário, pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar. O perigo neste caso é misturar palavras que mancham no contato umas com as outras. Culpa, por exemplo. A culpa mancha tudo que encontra e deve ser sempre alvejada sozinha.outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo, já que desejo, sendo uma palavra intensa, quase agressiva, pode, o que não é inevitável, esgarçar a força delicada da palavra amizade. Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.outro cuidado importante é não lavar demais as palavras. Sob o risco de perderem o sentido. A sujeirinha cotidiana, quando não é excessiva, produz uma oleosidade que dá vigor aos sons. Muito importante na arte de lavar palavras é saber reconhecer uma palavra limpa. Conviva com a palavra durante alguns dias. Deixe que se misture em seus gestos, que passeie pela expressão dos seus sentidos. À noite, permita que se deite, não a seu lado mas sobre seu corpo. Enquanto você dorme, a palavra, plantada em sua carne, prolifera em toda sua possibilidade. Se puder suportar essa convivência até não mais perceber a presença dela, então você tem uma palavra limpa.
Uma palavra limpa é uma palavra possível.
 Viviane Mosé

terça-feira, novembro 03, 2015

A Verdadeira Liberdade
A liberdade, sim, a liberdade!
A verdadeira liberdade!
Pensar sem desejos nem convicções.
Ser dono de si mesmo sem influência de romances!
Existir sem Freud nem aeroplanos,
Sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no cansaço!

A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais
A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida!
Como o luar quando as nuvens abrem
A grande liberdade cristã da minha infância que rezava
Estende de repente sobre a terra inteira o seu manto de prata para mim...
A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente,
A noção jurídica da alma dos outros como humana,
A alegria de ter estas coisas, e poder outra vez
Gozar os campos sem referência a coisa nenhuma
E beber água como se fosse todos os vinhos do mundo!

Passos todos passinhos de criança...
Sorriso da velha bondosa...
Apertar da mão do amigo [sério?]...
Que vida que tem sido a minha!
Quanto tempo de espera no apeadeiro!
Quanto viver pintado em impresso da vida!

Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade,
Dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote
Da casa do campo da minha velha infância...
Eu bebia e ele chiava,
Eu era fresco e ele era fresco,
E como eu não tinha nada que me ralasse, era livre.
Que é do púcaro e da inocência?
Que é de quem eu deveria ter sido?
E salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?

Álvaro de Campos, in "Poemas (Inéditos)"
Heterónimo de Fernando Pessoa

segunda-feira, novembro 02, 2015

O Tumulto
O tumulto concentrado da minha imaginação intelectual...
Fazer filhos à razão prática, como os crentes enérgicos...
Minha juventude perpétua
De viver as coisas pelo lado das sensações e não das responsabilidades.
(Álvaro de Campos, nascido no Algarve, educado por um tio-avô, padre,
que lhe instilou um certo amor às coisas clássicas.) (Veio para Lisboa muito novo ...)
A capacidade de pensar o que sinto, que me distingue do homem vulgar
Mais do que ele se distingue do macaco.
(Sim, amanhã o homem vulgar talvez me leia e compreenda a substância do meu ser,
Sim, admito-o,
Mas o macaco já hoje sabe ler o homem vulgar e lhe compreende a substância do ser.)

Se alguma coisa foi por que é que não é
Ser não é ser?

As flores do campo da minha infância, não as terei eternamente,
Em outra maneira de ser?
Perderei para sempre os afetos que tive, e até os afetos que pensei ter?
Há algum que tenha a chave da porta do ser, que não tem porta,
E me possa abrir com razões a inteligência do mundo?

Álvaro de Campos, in "Poemas"

Heterónimo de Fernando Pessoa