sábado, novembro 21, 2015

Parem de jogar cadáveres na minha porta.
Tenho que sair– respirar.
Estou seguindo para os jardins de Allambra a ouvir o que diz a água daquelas fontes
e acompanhar o desenho imperturbável dos zeligs.
Não me venham com jornais sangrentos sob os braços.
Parem de roubar meu gado, de invadir meu teto e de semear pregos por onde passo.
Estou em Essauíra, na costa do Marrocos olhando o mar. Ou em Minas
contemplando as montanhas ao redor de Diamantina.
Não me tragam o odorento lixo da estupidez urbana.
Parem de atirar em minha sombra e abocanhar meu texto.
Estou tornando a Delfos naquela manhã de neblinas
ouvindo o que me diz o oráculo em surdina.
Ainda agora embarquei para o Palácio Topkapi frente ao Bósforo,
quando tentaram me esfaquear na esquina.
Jamais permitirei que quebrem as porcelanas e roubem a gigantesca esmeralda na real vitrina.
Não me chamem para a reunião de condomínio.
Estou nos campos da Toscana onde a gigante mão de Deus penteia os montes
e minha alma se sente pequenina.
Dei de mão comendas e insígnias não tenho mais que na praça erguer protestos
e distribuir esmolas não é mais a minha sina.
Acabo de entrar no Pavilhão da Harmonia Preservada e me liberto
– na Cidade Proibida na China.
Não adianta o clamor de burocráticos compromissos nem vossa ira. Tenho oito anos
saí para nadar naquele açude atrás dos morros e vou pescar a minha única e inesquecível traíra.
Parem de jogar cadáveres na minha porta na minha mesa na minha cama
dificultando que alcance o corpo da mulher que amo.
Afastem de mim o meu o vosso cálice.
Impossível ficar no tempo que me coube o tempo todo preciso repousar num campo de tulipas
reaprendendo a ver o que era o mundo antes de como um Sísifo moderno desesperado julgar
– que o tinha que carregar.
 Affonso Romano de Sant'Anna

sexta-feira, novembro 20, 2015

A crônica é um jeito que o brasileiro descobriu para fazer poesia à paisana, contos à paisana, romances à paisana. É um golpe civil. Crônica tem uma superficialidade enganosa: por ser curta e de temas prosaicos, parece que é inofensiva. Sua profundidade reside no tom baixo de amizade. Sua agressividade é a ternura. Escrever crônicas é fazer amizades, contar segredos e confidências, é ajudar verdadeiramente as pessoas a não se conformarem.
Fabrício Carpinejar

quinta-feira, novembro 19, 2015

Para que a escrita seja legível,
é preciso dispor os instrumentos,
exercitar a mão,
conhecer todos os caracteres.
Mas para começar a dizer
alguma coisa que valha a pena,
é preciso conhecer todos os sentidos
de todos os caracteres,
e ter experimentado em si próprio
todos esses sentidos,
e ter observado no mundo
e no transmundo
todos os resultados dessas experiências.
Cecília Meireles

quarta-feira, novembro 18, 2015

Duas Situações Interessantes: Quando o pensamento anda mais rápido que a língua, e quando a língua anda mais rápido que o pensamento! Qual é o pior? O pior é quando o pensamento e a linguagem andam na mesma marcha. Aí começa o tédio!...

Jean Baudrillard 

terça-feira, novembro 17, 2015

Também eu sou um homem mortal, igual a todos, filho do primeiro que a terra modelou, feito de carne, no seio de uma mãe, onde, por dez meses, no sangue me solidifiquei, de viril semente e do prazer, companheiro do sono.

Ao nascer, também eu respirei o ar comum.
E, ao cair na terra que a todos recebe igualmente, estreei minha voz chorando, igual a todos.

Criaram-me com mimo, entre cueiros.
Nenhum rei começou de outra maneira.
Idêntica é a entrada de todos na vida, e idêntica é a entrada de todos na saída.

segunda-feira, novembro 16, 2015

A poesia está guardada nas palavras - é tudo que
eu sei.
Meu fado é o de não entender quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não cultivo conexões com o real.
Para mim, poderoso não é aquele que descobre ouro,
Poderoso para mim é aquele que descobre as insignificâncias
do mundo e nossas.
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei muito emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.
 Manoel de Barros

domingo, novembro 15, 2015

Já me fizeram muitas vezes esta pergunta: "você quer destruir tudo, mas o que surgirá depois?" respondi com um trecho de um poema de Brecht:

"A parábola do Buda sobre a casa em chamas".

Buda disse: "uma casa estava pegando fogo. Havia gente lá dentro. Alguém gritou-me pela janela: como está o tempo aí fora? chovendo? ventando?

"Afastei-me sem responder"