sábado, janeiro 09, 2016

Quando eu não te tinha...
 
 Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo...
Agora Amo a Natureza como um monge calmo a Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima...
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até a beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor — Tu não me tiraste a Natureza...
Tu mudaste a Natureza...
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim.
Por tu existires, vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e para te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as coisas.
Não me arrependo do que fui outrora
Por que ainda o sou.


Alberto Caeiro

sexta-feira, janeiro 08, 2016

Venham leis e homens de balanças, mandamentos daquém e dalém mundo venham ordens, decretos e vinganças, desça o juiz em nós até ao fundo. Nos cruzamentos da cidade, brilhe, vermelha, a luz inquisidora. Risquem no chão os dentes da vaidade e mandem que os lavemos à vassoura a quantas mãos existam, peçam dedos para sujar nas fichas dos arquivos não respeitem mistérios, nem segredos, pois que é natural nos homens serem esquivos. Ponham livros de ponto em toda a parte, relógios a marcar a hora exata. Não aceitem outra arte, que não sejam inquérito, local e data. Mas quando nos julgarem bem seguros,cercados de bastões e fortalezas, hão-de cair em estrondo os altos muros. E chegará o dia das surpresas.
José Saramago

quinta-feira, janeiro 07, 2016

E depois de fazer tudo o que fazem, levantam-se, tomam banho, cobrem-se de talco, perfumam-se, penteiam-se, vestem-se, e assim progressivamente vão voltando a ser o que não são.

quarta-feira, janeiro 06, 2016

Um dia desses eu separo um tempinho e ponho em dia todos os choros que não tenho tido tempo de chorar
Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, janeiro 05, 2016

Estou procurando. Estou procurando. Estou tentando entender.Tentando passar a alguém o que vivi até agora, e não sei a quem. Mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi. Confesso que tenho medo dessa desorganização profunda.



Clarice Lispector



segunda-feira, janeiro 04, 2016

Cuidado! Até cortar os nossos próprios defeitos pode ser perigoso. Pois nunca se sabe qual é o defeito que sustenta o nosso edifício inteiro.
 Clarice Lispector

domingo, janeiro 03, 2016

Como é o lugar quando ninguém passa por ele?
Existem as coisas sem ser vistas? O interior do apartamento desabitado, a pinça esquecida na gaveta, os eucaliptos à noite no caminho três vezes deserto, a formiga sob a terra no domingo, os mortos, um minuto depois de sepultados, nós, sozinhos no quarto sem espelho?

Carlos Drummond de Andrade