sábado, dezembro 19, 2015

O que vocês esperavam que acontecesse quando tiraram a mordaça que tapava essas bocas negras? Esperavam que elas lhes lançassem louvores? E essas cabeças que seus avós e seus pais haviam dobrado à força até o chão?
O que esperavam? Que se reerguessem com adoração nos olhos?
Ei-los em pé. Homens que nos olham. Ei-los em pé. Faço votos para que vocês sintam como eu a comoção de ser visto.
Hoje, esses homens pretos nos miram e nosso olhar reentra em nossos olhos. Tochas negras iluminam o mundo e nossas cabeças brancas não passam de pequenas luminárias balançadas pelo vento.
 Jean-Paul Sartre

sexta-feira, dezembro 18, 2015

Já somos o esquecimento que seremos, a poeira elementar que nos ignora, não foi Adão e que é agora todos os homens. Nós somos apenas as duas datas: a do princípio e a do fim. Eu não sou o insensato que se aferra ao mágico som de seu próprio nome. Eu penso com esperança naquele homem que não saberá o que eu fui sobre a terra. Em baixo do indiferente azul do céu, esta meditação é um consolo.
Jorge Luis Borges

quinta-feira, dezembro 17, 2015

Que existe mais, senão afirmar a multiplicidade do real?
A igual probabilidade dos eventos impossíveis?
A eterna troca de tudo em tudo?
A única realidade absoluta?
Seres se traduzem.
Tudo pode ser metáfora de alguma outra coisa ou de coisa alguma.
Tudo irremediavelmente metamorfose!
Paulo Leminski

quarta-feira, dezembro 16, 2015

A criança come o barro pensando comer o ovo. Diz a gente grande: é verme. Não, é fome. A cena se repete, e ela pode comer o descampado inteiro. Uma besta rosnando quieta, babando como cão raivoso.Andemos por esse pátio ausente de morangos. Dividamos nossas fomes, bebamos nossos próprios sangues. A cidade é de Deus, aqui nunca é outono. Nem Bob Esponja faz rir o lábio do menino que descasca. Frieza no sol a pino de quarenta graus. Amamentemos de fúria a ética inventada pelo homem. Pois “cuspe” é a palavra inventada para engolir a seco a mosca que nos tornamos nós!
Araripe Coutinho

terça-feira, dezembro 15, 2015

Por quantas impossíveis geografias

Ainda permaneceremos exilados na fronteira do equívoco

Mesmo nos sabendo vizinhos de terras devolutas?

 Ézio Deda

segunda-feira, dezembro 14, 2015

Esta estrada onde eu moro, entre duas voltas do caminho,
Interessa mais que uma avenida urbana.
Nas cidades todas as pessoas se parecem.
Todo mundo é igual. Todo mundo é toda a gente.
Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua alma.
Cada criatura é única. Até os cães.
Estes cães da roça até parecem homens de negócios:
Andam sempre preocupados.
E quanta gente vem e vai!
E tudo tem aquele caráter impressivo que faz meditar:
Enterro a pé ou a carrocinha de leite puxada por um bodezinho manhoso.
Nem falta o murmúrio da água, para sugerir, pela voz dos símbolos,
Que a vida passa! Que a vida, a vida passa!
E que a mocidade vai acabar.
 Manuel Bandeira

domingo, dezembro 13, 2015

Texto de ontem 1926, mas serve muito para hoje.

Eu ouço as vozes eu vejo as cores eu sinto os passos de outro Brasil que vem aí
mais tropical mais fraternal mais brasileiro.
O mapa desse Brasil em vez das cores dos Estados
terá as cores das produções e dos trabalhos.
Os homens desse Brasil em vez das cores das três raças terão as cores das profissões e regiões.
As mulheres do Brasil em vez das cores boreais terão as cores variamente tropicais.
Todo brasileiro poderá dizer: é assim que eu quero o Brasil todo brasileiro e não apenas o bacharel ou o doutor o preto, o pardo, o roxo e não apenas o branco e o semibranco.
Qualquer brasileiro poderá governar esse Brasil Lenhador, lavrador, pescador, vaqueiro, marinheiro, funileiro, carpinteiro contanto que seja digno do governo do Brasil
que tenha olhos para ver pelo Brasil, ouvidos para ouvir pelo Brasil coragem de morrer pelo Brasil ânimo de viver pelo Brasil mãos para agir pelo Brasil mãos de escultor que saibam lidar com o barro forte e novo dos Brasis mãos de engenheiro que lidem com tratores europeus e norte-americanos a serviço do Brasil mãos sem anéis (que os anéis não deixam o homem criar nem trabalhar).
mãos livres, mãos criadoras, mãos fraternais de todas as cores mãos desiguais que trabalham por um Brasil sem Azeredos, sem Irineus, sem Maurícios de Lacerda.
Sem mãos de jogadores nem de especuladores nem de mistificadores.
Mãos todas de trabalhadores, pretas, brancas, pardas, roxas, morenas, de artistas, de escritores, de operários, de lavradores, de pastores de mães criando filhos, de pais ensinando meninos de padres benzendo afilhados de mestres guiando aprendizes de irmãos ajudando irmãos mais moços de lavadeiras lavando de pedreiros edificando de doutores curando de cozinheiras cozinhando de vaqueiros tirando leite de vacas chamadas comadres dos homens.
Mãos brasileiras brancas, morenas, pretas, pardas, roxas tropicais sindicais fraternais.
Eu ouço as vozes eu vejo as cores eu sinto os passos desse Brasil que vem aí.


Gilberto Freyre