sábado, setembro 06, 2014

A lei e a realidade.
Diante da lei está um porteiro. Um homem do campo chega a esse porteiro e pede para entrar na lei. Mas o porteiro diz que agora não pode permitir-lhe a entrada. O homem do campo reflete e depois pergunta se então não pode entrar mais tarde. 
-É possível - diz o porteiro - mas agora não.
Uma vez que a porta da lei continua como sempre aberta e o porteiro se põe de lado o homem se inclina para olhar o interior através da porta. Quando nota isso o porteiro ri e diz: 
-Se o atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja bem: eu sou poderoso. E sou apenas o último dos porteiros. De sala para sala porém existem porteiros cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo eu posso suportar a simples visão do terceiro. 
O homem do campo não esperava tais dificuldades: a lei deve ser acessível a todos e a qualquer hora, pensa ele; agora, no entanto, ao examinar mais de perto o porteiro, com o seu casaco de pele, o grande nariz pontudo, a longa barba tártara, rala e preta, ele decide que é melhor aguardar até receber a permissão de entrada. O porteiro lhe dá um banquinho e deixa-o sentar-se ao lado da porta.
Ali fica sentado dias e anos. Ele faz muitas tentativas para ser admitido e cansa o porteiro com os seus pedidos. Às vezes o porteiro submete o homem a pequenos interrogatórios, pergunta-lhe a respeito da sua terra natal e de muitas outras coisas, mas são perguntas indiferentes, como as que os grandes senhores fazem, e para concluir repete-lhe sempre que ainda não pode deixá-lo entrar. O homem, que havia se equipado com muitas coisas para a viagem, emprega tudo, por mais valioso que seja, para subornar o porteiro. Com efeito, este aceita tudo, mas sempre dizendo: 
-Eu só aceito para você não julgar que deixou de fazer alguma coisa. 
Durante todos esses anos o homem observa o porteiro quase sem interrupção. Esquece os outros porteiros e este primeiro parece-lhe o único obstáculo para a entrada na lei. Nos primeiros anos amaldiçoa em voz alta e desconsiderada o acaso infeliz; mais tarde, quando envelhece, apenas resmunga consigo mesmo. Torna-se infantil e uma vez que, por estudar o porteiro anos a fio, ficou conhecendo até as pulgas da sua gola de pele, pede a estas que o ajudem a fazê-lo mudar de opinião.
Finalmente sua vista enfraquece e ele não sabe se de fato está ficando mais escuro em torno ou se apenas os olhos o enganam. Não obstante reconhece agora no escuro um brilho que irrompe inextinguível da porta da lei. Mas já não tem mais muito tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências daquele tempo convergem na sua cabeça para uma pergunta que até então não havia feito ao porteiro. Faz-lhe um aceno para que se aproxime, pois não pode mais endireitar o corpo enrijecido. O porteiro precisa curvar-se profundamente até ele, já que a diferença de altura mudou muito em detrimento do homem: 
-O que é que você ainda quer saber? pergunta o porteiro. Você é insaciável.
-Todos aspiram à lei - diz o homem. Como se explica que em tantos anos ninguém além de mim pediu para entrar? 
O porteiro percebe que o homem já está no fim e para ainda alcançar sua audição em declínio ele berra: 
-Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a.

sexta-feira, setembro 05, 2014


Eu sei que a gente se acostuma. :(  Mas não deveria.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.  E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.  Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos,  para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma. 

quinta-feira, setembro 04, 2014

                                             Moro num país...

No Brasil, as empresas privadas de segurança formam um exército cinco vezes mais numeroso que as forças armadas. Somando-se os empregados legais e os ilegais, chega-se ao milhão e meio. Este é o setor mais dinâmico da economia do país com a mais injusta distribuição de renda do mundo. Uma implacável cadeia produtiva: o Brasil produz injustiça. Que produz violência. Que produz medo. Que produz trabalho!
Eduardo Galeano

quarta-feira, setembro 03, 2014

São os do Norte que vêm

Tobias Barreto

Quando o menino de engenho
Chegou exclamando:
- “Eu tenho, Ó Sul, talento também!,
Faria, gesticulando,
Saiu à rua gritando:
- ‘ São os do Norte que vêm! ‘
Era um tumulto horroroso!
- ‘ Que foi? ‘ indagou Cardoso
Desembarcando de um trem.
E inteirou-se. Senão quando,
Os dois saíram gritando:
- ‘ E vêm os do Norte! Ê vêm!… ‘
Aos dois juntou-se o Vinícius
De Morais, flor dos Vinícius
E Melo Morais também!
- ‘ Que foi? ‘ as gentes falavam…
E os três amigos bradavam:
- ‘ São os do Norte que vêm! ‘
Nisso aparece em cabelo
O novelista Rebelo,
Que é Dias da Cruz também!
Mais uma voz para o coro!
E foi um tremendo choro:
- ‘ Ê vêm os do Norte! Ê vêm!…’
E o clamor ia engrossando
Num retumbar formidando
Pelas cidades além…
- ‘Que foi?’ as gentes falavam,
E eles pálidos bradavam:
- ‘São os do Norte que vêm!’

terça-feira, setembro 02, 2014

A realidade
Eu nunca sei quando as estórias acabam. Por isso sempre fico preso entre uma e outra, ou entre nenhuma e nenhuma outra; entre um recomeço sem fim e um fim sem término. Talvez por ser mais espectador ou coadjuvante, do que protagonista da minha vida, tenha essa enfermidade de não dar conta de quando baixa o pano. As luzes apagam, o público sai, os colegas limpam a maquiagem e eu continuo lá: com a fala na cabeça, o texto decorado, aguardando a deixa. A deixa que  nunca vem. Sempre tive medo das coisas e das pessoas. Um pavor e uma falta de fé. Talvez por isso eu tenha criado minha própria companhia teatral, onde sou diretor; contra-regra; atores e público. Enceno só para mim uma tragicomédia. A realidade me faz tão mal e me deixa tão fraco que fico, no fundo do palco, muitas vezes, a sussurrar o texto a mim mesmo. Às vezes não ouço. Quase sempre não ouço, porque sussurro baixo e minha voz é trêmula... O público não entende a peça, logo, não aplaude. Eu, furioso, demito a todos: ao autor; ao diretor; aos atores... Expulso o público do teatro e ateio fogo a tudo. E ali dentro fico eu, junto às cortinas e aos holofotes, incandescentes; queimando, queimando, queimando...
 Alejandro da Costa Carriles

segunda-feira, setembro 01, 2014

Será que vai ser sempre assim?
Prezado Professor, sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem deveria ver. Câmaras de gás construídas por engenheiros formados. Crianças envenenadas por médicos diplomados. Recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas. Mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e universidades. Assim tenho minhas suspeitas sobre a Educação. Meu pedido é: ajude seus alunos a tornarem-se humanos. Seus esforços nunca deverão produzir monstros treinados ou psicopatas hábeis. Ler, escrever e saber aritmética só são importantes se fizerem nossas crianças mais humanas.
Texto encontrado após a Segunda Guerra Mundial, num campo de concentração nazista.

domingo, agosto 31, 2014


                                              Entre o rosto e o retrato
Eu não quero o fácil, o manso, o maleável.
Não são para mim o claro, o concluso.
Eu quero o amargo, o áspero, o cortante fios das lâminas e o ardor.
Venha o impuro, o dolorido rasgar das entranhas e o derramar do fel garganta abaixo.
Abandonei as amplas claras praças, esquadrinhos, becos, as vielas esconsas inexatas.
Eu sigo no rumo estreito da incerteza com lascas me ferindo a palma e olho.
Entre cacos e gumes, entre gritos sem respostas.
E nem sei afinal se estou morrendo.
Deni Gomes