sábado, dezembro 13, 2014

O que sei 
Se eu soubesse algo que me fosse útil, mas prejudicial à minha família, eu rejeitaria. Se eu soubesse algo que fosse útil à minha família, mas prejudicial ao meu país, eu esqueceria. Se eu soubesse algo que fosse útil ao meu país, mas prejudicial à humanidade, eu consideraria esse algo um crime.
 Charles de Montesquieu

sexta-feira, dezembro 12, 2014

José
 E agora, José?
A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, você?
Você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama protesta, e agora, José?Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José?
E agora, José? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio - e agora?  
Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora? 
Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse, a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse…
Mas você não morre, você é duro, José! Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José! José!
José, pra onde?

quinta-feira, dezembro 11, 2014

Mas eu não sabia, eu não sabia. Não se pode saber tudo. Mesmo o que creio saber, tem horas, que não creio.

quarta-feira, dezembro 10, 2014

Li num texto sobre o Enrico Fermi, o físico italiano que foi um dos pais da bomba atômica. Um dia resolveu fazer uma alteração no processo que usava para induzir a radioatividade usando neutrons (ou coisa parecida, sou meio fraco em física, na verdade sou contra).

O chumbo não estava dando certo, em vez de chumbo usaria outra coisa. Parafina, decidiu, sem pensar. Foi a decisão mais importante da sua vida, até ali. A colisão com o núcleo de hidrogênio da parafina fazia diminuir a velocidade dos neutrons, e todos sabem o que isso significa.

Espero que saibam, porque eu não sei. O importante é que os nêutrons vagarosos foram os responsáveis, pelo Prêmio Nobel que Fermi ganhou em 1938.

Ele era, segundo o texto, ‘o mais racional e o menos impulsivo dos cientistas’, mas escolhera a parafina num impulso. Tivera a intuição da parafina.

A história da ciência está cheia de sacadas do mesmo tipo, de manifestações do que outro cientista, Michael Polanyi, chama de ‘conhecimento tácito’, ou o que nós sabemos sem saber que sabemos.

Albert Einstein – outro que intuiu e ‘inventou’, muito mais do que deduziu racionalmente ele dizia que tinha um sentimento na ponta dos dedos, que substitui a percepção convencional e a racionalização.

Muitas vezes é a ponta dos dedos que sabe o que nós não sabemos que sabemos. Einstein, aparentemente, consultava a ponta dos seus dedos com frequência.

Tudo isto a respeito de que? Não sei. Eu talvez esteja querendo dizer que se deva recorrer a ponta dos dedos para entender o que se passa na política brasileira hoje, já que os órgãos com que tradicionalmente se avalia a realidade nacional não estão dando conta.

Ou está havendo uma grande mudança disfarçada de nada ou um grande nada disfarçado de mudança. Por aí. Ou não. Se eu não sei nem o que sei, vou saber o que estou dizendo?
 Luiz Fernando Veríssimo

terça-feira, dezembro 09, 2014

Sabe aqueles ambulantes que saíam pela cidade a afiar as facas?
Eu gostava de seu assobio estridente, das chispas de fogo fabricadas pelo metal contra metal, dos olhos infantis que admiravam o relampejar, das cozinheiras e arrumadeiras que, da janela, piscavam para o portuga, padroeiro dos degoladores de galinha.
... o afiador de facas, o pipoqueiro, o sorveteiro, o baleeiro, o leiteiro
... profissões populares que se foram com a rapidez que trouxe o automóvel e o avião, esses aparelhos assassinos do século!
Fui reler o poema de Drummond. “Que século, meu Deus!” Diziam os ratos que começavam a roer o edifício.
 
Graciliano Ramos

segunda-feira, dezembro 08, 2014

Frio. Já é se dar o direito de ser frio. Que dia.
Eu tento passar por ele incógnito. Me entra nos ossos.
É uma questão pessoal. Eu finjo que o frio não me ofende. Talvez se emende, porque o frio tem a delicadeza de um punhal.

domingo, dezembro 07, 2014


Eu olho Teresa, vejo-a sentada aqui a meu lado. A poucos centímetros da mim. A poucos centímetros, muitos quilômetros. Por que essa impressão de que precisaria de quilômetros para medir a distância, o afastamento em que a vejo nesse momento?
Eu olho Teresa como se olhasse o retrato de uma antepassada que tivesse vivido em outro século. Ou como se olhasse um vulto em outro continente, através de um telescópio. Vejo-a como se a cobrisse a poeira tenuíssima ou o ar quase azul que envolvem as pessoas afastadas de nós muitos anos e muitas léguas.
Posso dizer dessa moça ao meu lado que é a mesma Teresa que durante todo o dia de hoje, por efeito do gás do sonho, eu senti pegada a mim?
Esta é a mesma Teresa que na noite passada eu conheci em toda intimidade? Posso dizer que a vi, falhei-le, posso dizer que a tive em toda intimidade? Que intimidade existe maior que a do sonho? A desse sonho que ainda trago em mim como um objeto que me pesasse no bolso?
Ainda me parece sentir o mar do sonho que inundou meu quarto. Ainda sinto a onda chegando à minha cama. Ainda me volta o espanto de despertar entre móveis e paredes que eu não compreendia pudessem estar enxutos. E sem nenhum sinal dessa água que o sol secou, mas de cujo contacto ainda me sinto friorento e meio úmido (penso agora que seria mais justo, do mar do sonho, dizer que o sol o afugentou, porque os sonhos são como as aves, não apenas porque crescem e vivem no ar).
Teresa aqui está. Teresa aqui está, ao alcance de minha mão, de minha conversa. Por que, entretanto, me sinto sem direitos fora daquele mar? Ignorante dos gestos, das palavras?
O sonho volta, me envolve novamente. A onda torna a bater em minha cadeira, ameaça chegar até a mesa. Penso que, no meio de toda essa gente de terra, gente que parece ter criado raízes, como um lavrador ou uma colina, eu sou o único a escutar esse mar. Talvez Teresa...
Talvez Teresa... sim, quem me dirá que esse oceano não nos é comum?
Posso esperar que esse oceano nos seja comum? Um sonho é uma criação minha, nascida de meu tempo adormecido, ou existe nele uma participação de fora, de todo o universo, de uma geografia, sua história, sua poesia?
O arbusto ou a pedra aparecida em qualquer sonho pode ficar indiferente à vida de que está participando? Pode ignorar o mundo que está ajudando a povoar? É possível que sintam essa participação, esses fantasmas, essa Teresa, por exemplo, agora distraída e distante? Há algum sinal que faça compreender termos sido, juntos, peixes de um mesmo mar?
De onde me veio a idéia de que Teresa talvez participe de um universo privado, fechado em minha lembrança, desse mundo que através de minha fraqueza eu me compreendi ser o único onde será possível cumprir os atos mais simples, como por exemplo caminhar, beber um copo de água, escrever meu nome, nada, nem mesmo Teresa. Teresa.

João Cabral de Melo Neto