sábado, dezembro 12, 2015

Li num texto sobre o Enrico Fermi, o físico italiano que foi um dos pais da bomba atômica. Um dia resolveu fazer uma alteração no processo que usava para induzir a radioatividade usando neutrons (ou coisa parecida, sou meio fraco em física, na verdade sou contra).

O chumbo não estava dando certo, em vez de chumbo usaria outra coisa. Parafina, decidiu, sem pensar. Foi a decisão mais importante da sua vida, até ali. A colisão com o núcleo de hidrogênio da parafina fazia diminuir a velocidade dos neutrons, e todos sabem o que isso significa.

Espero que saibam, porque eu não sei. O importante é que os nêutrons vagarosos foram os responsáveis, pelo Prêmio Nobel que Fermi ganhou em 1938.

Ele era, segundo o texto, ‘o mais racional e o menos impulsivo dos cientistas’, mas escolhera a parafina num impulso. Tivera a intuição da parafina.

A história da ciência está cheia de sacadas do mesmo tipo, de manifestações do que outro cientista, Michael Polanyi, chama de ‘conhecimento tácito’, ou o que nós sabemos sem saber que sabemos.

Albert Einstein – outro que intuiu e ‘inventou’, muito mais do que deduziu racionalmente ele dizia que tinha um sentimento na ponta dos dedos, que substitui a percepção convencional e a racionalização.

Muitas vezes é a ponta dos dedos que sabe o que nós não sabemos que sabemos. Einstein, aparentemente, consultava a ponta dos seus dedos com frequência.

Tudo isto a respeito de que? Não sei. Eu talvez esteja querendo dizer que se deva recorrer a ponta dos dedos para entender o que se passa na política brasileira hoje, já que os órgãos com que tradicionalmente se avalia a realidade nacional não estão dando conta.

Ou está havendo uma grande mudança disfarçada de nada ou um grande nada disfarçado de mudança. Por aí. Ou não. Se eu não sei nem o que sei, vou saber o que estou dizendo?
Luiz Fernando Veríssimo

sexta-feira, dezembro 11, 2015

Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
As ferozes televisões que mostram o mal

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino que chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o que há melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, dezembro 10, 2015

Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
É a circulação e o movimento infinito.
Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido.


Murilo Mendes

quarta-feira, dezembro 09, 2015

Entretidos em discutir a morte, anoiteceu e não acendemos a luz.
Não víamos o rosto um do outro.
Com doçura e sem fervor, a voz de Macedonio Fernandez repetia que a alma é imortal.
Garantia que a morte não é nada.
Morrer tinha que ser o menos importante que pode acontecer a um homem.
Eu, Jorge Luis Borges, brincava com a navalha de Macedonio: abria e fechava.
Um acordeom, numa casa vizinha, despachava "la cumparsita", essa choradeira infinita e consternada de que muita gente gosta porque inventaram que é velha.
Então, para podermos continuar discutindo em paz a imortalidade, propus a Macedonio que nos suicidássemos.
Francamente, não lembro se nos suicidamos naquela noite.


Jorge Luis Borges



Revestindo uma couraça de raios laser à prova de bazucas, não ouve o clamor dos pais da pátria, ignora a biblioteca de Jefferson, ele próprio, arquiteto de sua mansão numa época em que se chegou a pensar em adotar o grego clássico, em vez do inglês, como idioma da nova república que antecipou a revolução francesa, que inspirou os libertadores da hispano-américa e os inconfidentes de Minas.

O megamacrosuperherói do bem não está interessado em ouvir mais nada. Nem repara quando Martin Luther King apresenta afro-condolências a uma afro-americana condoleezza verde-hira
ferrúgeo-parda como a estátua da liberdade vista de perto.

O supermacromegacowboy vestido de "mariner" chegou ao limite. Seus olhos azuis são um frio risco de aço: basta de ônus onerosas e inoperosas!
Basta de franceses amolecidos e decadentes e de alemães desleais!

Vênias dadas ao trêfego blair e aos dois porta-vozes de eurodireita: o asinino Aznar, ostentando as medalhas do generalíssimo, e o mafioso Berlusconi, com bufos esgares de Mussolini.

Os dois olhos azuis são agora um único risco de aço.

O dedo no comando está prestes a apertar o botão. O ar tem um ataque cardíaco.

A primeira bomba, como um ovo de assombro, tomba lá onde foi o Zigurat de Babel, ali onde a rainha Semíramis passava tardes amenas e odorantes em seus jardins suspensos.
 Haroldo de Campos

terça-feira, dezembro 08, 2015

Não vou deixar me embrutecer..
O general só tem oitenta homens, e o inimigo, cinco mil. Em sua tenda o general blasfema e chora. Então escreve uma ordem do dia inspirada, que pombos correios espalham sobre o acampamento inimigo. Duzentos soldados inimigos mudam de lado a favor do general. Segue-se uma escaramuça, que o general vence facilmente, e mais dois regimentos inimigos se passam para o seu lado. Agora o inimigo tem oitenta homens e o general cinco mil. Então o general escreve outra ordem do dia e setenta e nove homens passam para o seu lado. Só resta um inimigo, cercado pelo exército do general, que o aguarda em silêncio. Transcorre a noite e o inimigo não passou para o seu lado. O general blasfema e chora em sua tenda. Ao amanhecer o inimigo desembainha lentamente a espada e avança em direção a tenda do general. Entra e olha pra ele. O exército do general debanda e o sol começa a surgir.
 Júlio Cortázar

segunda-feira, dezembro 07, 2015

Morte de fumante... - 22/07/2001


Isso não foi amplamente divulgado

Vejam o que saiu no jornal há poucos dias: Morte de fumante ajuda economia, diz Philip Morris. A companhia americana de cigarros disse ao governo da República Tcheca que a morte prematura de fumantes por câncer tem um impacto positivo nas finanças do país. Segundo a Philip Morris a cada fumante morto o governo deixa de gastar dinheiro na área de saúde e livra-se de pagar aposentadoria. Além disso, o morto abre uma vaga no mercado de trabalho em favor de um desempregado. Essa talvez seja a maior e mais cínica provocação dos últimos e dos próximos anos! Ou será que eles estão certos? Será que é preciso morrer pra resolver as coisas? Bem, tem outra provocação: o espaço tão pequeno que os jornais e a TV abriram para esse assunto.

Mas o Blog do Ideilson tem memoria.

domingo, dezembro 06, 2015

A velhice

Eu cheguei ao limite de minhas capacidades intelectuais
Eu percebo que poderei perdê-las a qualquer momento
Além disso, eu perdi muita gente querida, amigos e parentes
Eu, que tive uma atividade de reflexão, estudo e ensino, rodeado de pessoas que amava, eu me vejo cada vez mais solitário
Quando vivemos uma crise assim, a sabedoria vai embora e perdemos o rumo de nossas reflexões
De que valeram os 31 livros que eu publiquei. O que  sobra de tudo que a gente aprendeu no momento limite. Eu sai a procura de um tipo de sabedoria que me ajudasse a suportar a velhice. Compreendê-la com serenidade
Eu só encontro consolo quando eu recito baixinho, para mim mesmo, os poemas que sei de cor
A repetição é uma forma arcáica de conhecimento, mas é eficaz, quando se vive num momento de domínio da tecnologia e do consumismo.
É repetindo esses poemas que eu aprendo coisas importantes sobre mim próprio


Harold Bloom