sábado, dezembro 05, 2015

O céu está nas nuvens. Altas passam as nuvens.
Ninguém as possui. Ninguém!

Podes vender-me um dólar de água da fonte?
Um nuvem grávida, crespa e suave como uma ovelha?
Ou, quem sabe, água chovida das montanhas, água dos charcos?
Água dos charcos, abandonada aos cães?
Ou uma légua de mar, talvez um lago?

A água cai e corre. A água corre. Passa.
Ninguém a possui. Ninguém.

Podes vender-me terra?
A profunda noite das raízes, dentes de dinossauros,
A cauda espessa de longínquos esqueletos?
Podes vender-me selvas já sepultadas, aves mortas,
Peixes de pedra, enxofre dos vulcões,
Milhões e milhões de anos em espiral crescendo?

Podes vender-me terra?
Podes vender-me?
Podes?

A tua terra é terra minha, todos os pés se apoiam nela.
Ninguém a possui. NINGUÉM!


Nicolás Guillén

sexta-feira, dezembro 04, 2015

Eu salto de telhado em telhado
E com enorme rede de borboletas
Eu caço tecnocratas, caço burocratas
Eu mostro aos alunos
Junto com dinossauros
Gigantossauros, tiranossauros
Que descem obedientes
Pelas paredes da sala de aula
Vasko Popa

quinta-feira, dezembro 03, 2015

Poesia é uma coisa muito rara.
A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.

Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? o amor?
Não diga nada.

Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.

Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem, perdão.
Não peça.

Carlos Drummond de Andrade


quarta-feira, dezembro 02, 2015

Escrever, pense....E S C R E V E R
Para que a escrita seja legível,
é preciso exercitar a mão,
e conhecer todos os caracteres.
Mas para começar a dizer
alguma coisa que valha a pena,
é preciso conhecer todos os sentidos
desses os caracteres,
e ter experimentado em si próprio
todos esses sentidos,
é ter observado no mundo
e no transmundo
todos os resultados que se experimentou.
Cecília Meireles

terça-feira, dezembro 01, 2015

É tão depressa dia e nada nos redime
Alguém não despertou ficou na noite
Vieram de manhã uns homens que varreram
a restante alegria destas ruas
A criança na roda entoará:
estão hoje fundos os pássaros
estão hoje fundos os pássaros
quem no-los tirará de lá?
Tão vasta como o mar a nossa dor
alguém nos poupará de nela naufragar?
Ruy Belo

segunda-feira, novembro 30, 2015

Parece cocaína mas é só tristeza, talvez tua cidade
Muitos temores nascem do cansaço e da solidão
E o descompasso e o desperdício herdeiros são
Agora da virtude que perdemos

Há tempos tive um sonho, não me lembro
não me lembro

Tua tristeza é tão exata
E hoje o dia é tão bonito
Já estamos acostumados
A não termos mais nem isso

Os sonhos vêm e os sonhos vão
O resto é imperfeito

Disseste que se tua voz tivesse força igual
À imensa dor que sentes
Teu grito acordaria
Não só a tua casa
Mas a vizinhança inteira

E há tempos nem os santos têm ao certo
A medida da maldade
Há tempos são os jovens que adoecem
Há tempos o encanto está ausente
E há ferrugem nos sorrisos
E só o acaso estende os braços
A quem procura abrigo e proteção

Meu amor, disciplina é liberdade
Compaixão é fortaleza
Ter bondade é ter coragem
Lá em casa tem um poço
mas a água é muito limpa

domingo, novembro 29, 2015

Eu nunca sei quando as histórias acabam. Por isso sempre fico preso entre uma e outra, ou entre nenhuma e nenhuma outra; entre um recomeço sem fim e um fim sem término.
Talvez por ser mais espectador ou coadjuvante, do que protagonista da minha vida, tenha essa enfermidade de não dar conta de quando baixa o pano. As luzes apagam, o público sai, os colegas limpam a maquiagem e eu continuo lá: com a fala na cabeça, o texto decorado, aguardando a deixa. A deixa que nunca vem.
Sempre tive medo das coisas e das pessoas. Um pavor e uma falta de fé.Ttalvez por isso eu tenha criado minha própria companhia teatral, onde sou diretor; contra-regra; atores e público. Enceno só para mim uma tragicomédia.
A realidade me faz tão mal e me deixa tão fraco que fico, no fundo do palco, muitas vezes, a sussurrar o texto a mim mesmo. Às vezes não ouço. Quase sempre não ouço, porque sussurro baixo e minha voz é trêmula… O público não entende a peça, logo, não aplaude.
Eu, furioso, demito a todos: ao autor; ao diretor; aos atores… expulso o público do teatro e ateio fogo a tudo. E ali dentro fico eu, junto às cortinas e aos holofotes, incandescentes; queimando, queimando, queimando…