sábado, fevereiro 28, 2015

Ode aos herdeiros políticos. Ganham aos catorze anos a primeira gravata, com as cores do partido que melhor os ilude. Aos quinze, seguem a caravana. Aplaudem conforme o cenho das chefias. São os chamados anos de formação. Aí aprendem a compor o gesto, a interpretar humores, a mentir honestamente. Aprendem a leveza das palavras, a escolher o vinho, a espumar de sorriso nos dentes. Aprendem o sim e o não mais oportunos. Aos vinte anos, já conhecem pelo cheiro o carisma de uns, a menos-valia de outros, enquanto prosseguem vagos estudos de direito ou economia. Estão de olho nos primeiros cargos; é preciso minar, desminar, intrigar, reunir. Só os piores conseguem ultrapassar essa fase. Há então os que vão para os municípios, os que preferem os organismos públicos. Tudo depende de um golpe de vista ou dos patrocínios à disposição. É bem o momento de integrar as listas de elegíveis, pondo sempre a baixeza acima de tudo. A partir do parlamento, tudo pode acontecer: diretor de empresa pública, coordenador de campanha, assessor de ministro, ministro, diretor executivo, presidente da caixa, embaixador na pqp!... Mais à frente, para coroar a carreira, o golden-share de uma cadeira ao pôr-do-sol. No final, para os mais obstinados, pode haver nome de rua (com ou sem estátuas), flores de panegírico, fanfarras e... Formol!

José Miguel Silva 

sexta-feira, fevereiro 27, 2015

A vida bate como um relógio. Um arfar de vento no capim. É fome que rói as entranhas, facho que ilumina os olhos, percorre o corpo em incêndio e queima os lábios de paixão. Um cheiro de carne, de vinho, de fruta recém-tirada do pé. A vida recende violenta, por que não abocanhá-la inteira, cruel, vermelha, suculenta, escorrendo sangue pelos dentes?

Raquel Naveira

quinta-feira, fevereiro 26, 2015

Eu cheguei ao limite de minhas capacidades intelectuais
Eu percebo que poderei perdê-las a qualquer momento
Além disso, eu perdi muita gente querida, amigos e parentes
Eu, que tive uma atividade de reflexão, estudo e ensino, rodeado de pessoas que amava, eu me vejo cada vez mais solitário
Quando vivemos uma crise assim, a sabedoria vai embora e perdemos o rumo de nossas reflexões
De que valeram os 31 livros que eu publiquei. O que  sobra de tudo que a gente aprendeu no momento limite. Eu sai a procura de um tipo de sabedoria que me ajudasse a suportar a velhice. Compreendê-la com serenidade
Eu só encontro consolo quando eu recito baixinho, para mim mesmo, os poemas que sei de cor
A repetição é uma forma arcáica de conhecimento, mas é eficaz, quando se vive num momento de domínio da tecnologia e do consumismo
É repetindo esses poemas que eu aprendo coisas importantes sobre mim próprio

Harold Bloom

quarta-feira, fevereiro 25, 2015

Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
E a circulação e o movimento infinito.
Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido.

Murilo Mendes

terça-feira, fevereiro 24, 2015

Estou procurando. Estou procurando. 
Estou tentando entender.
Tentando passar a alguém o que vivi até agora, e não sei a quem.
Mas não quero ficar com o que vivi.
Não sei o que fazer do que vivi. 
Confesso que tenho medo dessa desorganização profunda.

segunda-feira, fevereiro 23, 2015

Estou convencido de que se alguns Extraterrestres Desembarcassem amanhã no Brasil, haveria experts, Jornalistas, especialistas e Analistas de toda espécie para Explicar às pessoas que, no Fundo, não é uma coisa tão Extraordinária assim, que já Se tinha pensado nisso, que Até já existia há muito tempo Uma comissão especializada no Assunto. E, sobretudo, que Não há porque se afobar, pois Isso é problema do governo.

domingo, fevereiro 22, 2015

Um dia, pensei: por que você não pensa em uma coisa que nunca pensou? Tinha um lago perto e sempre vinha um peixe que botava a cabeça do lado de fora. Havia gaivotas que mergulhavam no lago e tornavam a sair. Comecei a olhar aquilo e pensar: se o peixe saísse d’água, morreria afogado no ar, mas se a gaivota ficasse dentro da água, morreria afogada. Comecei a olhar os dois elementos da natureza – a água e o ar - e descobri uma coisa bonita: o peixe e o pássaro passam... Sem deixar rastro!
Bartolomeu Campos de Queirós