sábado, janeiro 31, 2015

Vinte anos de teatro e alucinação. Até que um dia vendeu tudo e regressou a seu rio de infância e às árvores de sua aldeia natal. Foi vencido, o artista,  pelo cansaço e pelo horror de ser tantos reis assassinados e tantos amantes que agonizam. Finalmente liberto das ilusões mitológicas e vozes latinas de seus textos, era preciso agora ser alguém, antes ou depois de morrer, não se sabe. Postou-se diante de deus e disse: “eu, que tantos homens fui em vão, quero ser alguém, quero ser eu! E a voz solene de deus lhe respondeu: “nem eu mesmo sou eu. Sonhei um mundo como tu, Shakespeare, sonhaste em tua obra. E entre as formas de meu sonho estás tu, que como eu, és muitos... E ninguém! 
Jorge Luis Borges

sexta-feira, janeiro 30, 2015

Enterrem meu corpo em qualquer lugar.
Que não seja, porém, um cemitério.
De preferência, mata;
Na Gávea, na Tijuca, em Jacarepaguá.
Na tumba, em letras fundas,
Que o tempo não destrua,
Meu nome gravado claramente.
De modo que, um dia,
Um casal desgarrado
Em busca de sossego
Ou de saciedade solitária,
Me descubra entre folhas,
Detritos vegetais,
Cheiros de bichos mortos.
(Como eu).
E, como uma longa árvore desgalhada
Levantou um pouco a lage do meu túmulo
Com a raiz poderosa,
Haja a vaga impressão
De que não estou na morada.
Não sairei, prometo.
Estarei fenecendo normalmente
Em meu canteiro final.
E o casal repetirá meu nome,
Sem saber quem eu fui,
E se irá embora,
Preso à angústia infinita
Do ser e do não ser.
Ficarei entre ratos, lagartos,
Sol e chuva ocasionais,
Este sim, imortais.
Até que, um dia, de mim caia a semente
De onde há de brotar a flor
Que eu peço que se chame
Papáverum Millôr.
Millôr Fernandes

quinta-feira, janeiro 29, 2015

É sempre no passado aquele orgasmo, é sempre no presente aquele duplo, é sempre no futuro aquele pânico.
É sempre no meu peito aquela garra. 
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra.
É sempre no meu trato o amplo distrato. Sempre na minha firma a antiga fúria. Sempre no meu engano outro retrato.
É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.
Sempre no meu amor a noite rompe. Sempre dentro de mim meu inimigo.E sempre no meu sempre a mesma ausência.
 Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, janeiro 28, 2015

Não entendo, não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Eu Sinto que eu sou muito mais completo quando eu não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples estado de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doido. É um desinteresse manso, uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: eu quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.
 Clarice Lispector

terça-feira, janeiro 27, 2015

"Como explicar que o homem, um animal tão predominantemente construtivo, seja tão apaixonadamente propenso à destruição? Talvez porque seja uma criatura volúvel, de reputação duvidosa. Ou talvez porque seu único propósito na vida seja perseguir um objetivo, algo que, afinal, ao ser atingido, não mais é vida, mas o princípio da morte."
 Fiódor Dostoiévski

segunda-feira, janeiro 26, 2015

Imaginemos que se descobriu em Toledo, na Espanha, um texto árabe anônimo, dizendo que ao investir contra moinhos de vento, Dom Quixote matou um homem. Como Dom Quixote reagiria à descoberta?

Que eu saiba há três respostas possíveis. 

A primeira: nenhuma reação, porque no mundo alucinado de Dom Quixote a morte não é menos comum que a magia.  

A segunda hipótese é patética: Dom Quixote não conseguiu esquecer-se de que é mera projeção de seus leitores. Ao ver a morte desperta para sempre de sua loucura e sente-se criminoso como Caim, que matou Abel. 

A terceira hipótese é talvez mais verossímil: Quixote não pode admitir que o efeito à morte não corresponda a uma causa, e não mais conseguirá deixar de ser louco. Sim, sim, existe ainda uma quarta hipótese de difícil compreensão no ocidente: diante do cadáver do inimigo, Dom Quixote intui que engendrar e matar são atos que transcendem a condição  humana . Sabe que o morto é ilusório, como o são a espada sangrenta que traz na mão, ele próprio, sua vida passada, os deuses e o universo.
Cidade Em Chamas
Engenheiros do Hawaii
As chances estão contra nós, Mas nós estamos por aí, A fim de sobreviver,,,,
Como um avião sobrevoa, A cidade em chamas.....A cidade em chamas
No meio da confusão
Andando sem direção
A fim de sobreviver
Só pra ver como brilha
A cidade em chamas
A cidade em chamas
Se o que eu digo, Não faz sentido, Não faz sentido, ficar ouvindo
Mas o que eu digo, Não é mentira, Não faz sentido...Ficar mentindo
Enquanto as bombas caem do avião
Deixando de recordação....Da cidade em chamas....A cidade em chamas
Já ouvimos esta estória
Sabemos como acaba
Acontece quase tudo
Não muda quase nada
Já vimos este filme
Sabemos como acaba
Explodem quase tudo
Não sobra quase nada
Então, só resta uma solução
Sair no meio da sessão
Pra ver....A cidade em chamas....A cidade em chamas
As chances estão contra nós
Mas nós estamos por aí
A fim de sobreviver
No meio da confusão
Andando sem direção
A fim de sobreviver
Enquanto as bombas caem do avião, Deixando de recordação
A cidade em chamas....A cidade em chamas
Não basta ter coragem, É preciso estar sozinho. É preciso trair tudo
E trazer a solidão
Eu sei que eles tem razão
Mas a razão é só o que eles tem? quantas bocas se fecharão
Quando a bomba beijar o chão
Da cidade em chamas?...Da cidade em chamas...

As chances estão contra nós
Mas nós estamos por aí
A fim de sobreviver
Como um avião sobrevoa
A cidade em chamas

domingo, janeiro 25, 2015

Fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo ou talvez menos; não sei quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido o seu número? O problema envolve o da existência de Deus. Se Deus existe, o número é definido, porque Deus sabe quantos pássaros vi. Se Deus não existe, o número é indefinido, porque ninguém pode fazer a conta. Nesse caso, vi menos de dez pássaros (digamos) e mais de um, mas não vi nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três ou dois pássaros. Vi um número entre dez e um, que não é nove, oito, sete, seis, cinco, etc. Esse número inteiro é inconcebível; ergo, Deus existe.
Jorge Luis Borges