Limpo com um espanador a memória de Maria Teresa Cayetana da Silva, Duquesa de Alba, enterrada no Campo de Santo Isidoro, de onde foi exumada para autópsia em 1945, notando-se então a falta dos pés.
Enterraram-na vestida, e é assim que o corpo surge na fotografia, com a mão direita visível e um esgar de dor na caveira.
A nudez, aqui, pertence apenas à morte, que lhe aconteceu antes dos quarenta anos, como se a mais bela mulher de Espanha pudesse morrer de um dia para outro, sem razão aparente.
Falou-se de veneno. Mas seu veneno era outro: o da beleza.
Nua sobre almofadas, no quadro de Goya, os seios apontando horizontes do amor, o púbis sobressaindo de entre as coxas, na linha do umbigo, a duquesa de Alba nos fixa com os olhos desmaiados do prazer.
A mão que se vê no túmulo segura, na tela, a cabeça. E o rito da morte é substituído por um sorriso de lábios fechados, num desafio a quem por ela passa, como se alguém pudesse resistir ao abismo que se abre sob seu braço esquerdo, onde se encontram o tecido e o torso.
Nua e vestida, a duquesa de Alba está inteira. Olho para seus pés, onde cada um dos dedos, com as unhas perfeitas, não adivinha a mutilação póstuma, para relíquia ou simples descuido, o que não é grave: em algum juízo final, os restos se hão de colar. E Maria Teresa Cayetana da Silva, restituída a seu esplendor, se apresentará com o argumento com que a limpo, agora, do pó dos séculos: a beleza absoluta de seu corpo, o mais puro sinal de que merece a eternidade.
Nuno Júdice