sábado, setembro 27, 2014

Duas festas no Mar
Uma sereia encontrou um livro de Freud no mar.
Ficou sabendo de coisas que o rei do mar nem sonhava.
Quando a sereia leu Freud sobre uma estrela do mar, tirou o pano de prata
que usava para esconder a sua cauda de peixe.
E o mar então deu uma festa.
E no outro dia a sereia achou um livro de Marx dentro de um búzio do mar.
Quando a sereia leu Marx ficou sabendo de coisas que o rei do mar nem sonhava
nem a rainha do mar.
Tirou então a coroa que usava para dizer que não era igual aos peixinhos.
Quebrou na pedra a coroa.
E houve outra festa no mar.

Sosígenes Costa

sexta-feira, setembro 26, 2014

A lua ignora que é tranquila e clara e não pode sequer saber que é lua;
A areia, que é a areia. Não há uma coisa que saiba que sua forma é rara.
As peças de marfim são tão alheias, ao abstracto xadrez como essa mão
Que as rege. Talvez o destino humano, breve alegria e longas odisseias,
Seja instrumento de Outro. Ignoramos;
Dar-lhe o nome de Deus não nos conforta.
Em vão também o medo, a angústia, a absorta
E truncada oração que iniciamos.
Que arco terá então lançado a seta, que eu sou? Que cume pode ser a meta? 
 Jorge Luis Borges

quinta-feira, setembro 25, 2014


Porque éramos amigos e, talvez, para juntar outros interesses aos muitos que nos obrigávamos, decidimos jogar jogos de inteligência.  Pusemos um tabuleiro frente a nós, equitativo em peças, em valores e em possibilidades de movimentos. Aprendemos as regras, juramos respeitá-las, e a partida teve início. Eis-nos aqui, há um século sentados, meditando encarniçadamente em como dar a estocada última que aniquile inapelavelmente e para sempre... O outro!
Rosario Castellanos

terça-feira, setembro 23, 2014

Que existe mais, senão afirmar a multiplicidade do real?
A igual probabilidade dos eventos impossíveis?
A eterna troca de tudo em tudo?
A única realidade absoluta?
Seres se traduzem.
Tudo pode ser metáfora de alguma outra coisa ou de coisa alguma.
Tudo irremediavelmente metamorfose!
Paulo Leminski

segunda-feira, setembro 22, 2014

Em Belém da Paraiba
Eu penso que Jesus devia de nascer em Belém na Paraíba. Sim, em Belém, perto de Guarabira e vizinho de Pirpirituba. E se não bastasse a vizinhança a indicar a rima e o caminho, perto de Nova Cruz. Era filho caçula de Dona Maria, mulher dona de beleza e que germinava bondade nas pessoas. Era menino moreno, muito esperto, embalado em rede de algodão cru. Ele tinha sandálias com currulepo entre os dedos e cajus, em dezembro, a lhe matar a sede. E seu pastor foi um vaqueiro nordestino, de gibão e perneira e guarda-peito, para livrar suas carnes da Jurema. Teriam vindo adorar o deus-menino os Santos Reis entrelaçados de bom jeito: um negro, um índio e um branco português. Seria fácil encontrar espinhos, para coroar a fronte de Jesus, e um pau de arara em São José do Egito para levá-lo, retirante, para São Paulo. Um santo feito para as grandes secas! 'Meu Deus, meu Deus, por que nos abandonaste...', exclamaria enquanto repartiria com o povo nu as suas vestes, multiplicadas como pães ou peixes. Quando criança, o Jesus da Paraíba era carpinteiro como seu pai, fazendo caixões azuis para os anjos do lugar. E proezas num cavalo de pau. Sim, num cavalo de pau, pois seu jumento era muito magro e nem servia para carne de jabá. Jesus era um menino desnutrido a fazer o bem, desnutrido como os outros da região, onde as coisas só vão na base do milagre ou da força parida da vontade. Eu penso que Jesus devia de nascer em Belém, na Paraíba!
Diógenes da Cunha Lima

domingo, setembro 21, 2014

Ver com a alma
Não basta abrir a janela
para ver os campos e o rio.
Não é o bastante não ser cego
para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.
 Alberto Caeiro