quinta-feira, junho 26, 2014

A primeira provocação ele aguentou calado. Na verdade, gritou e esperneou. Mas todos os bebês fazem assim, mesmo os que nascem em maternidade, ajudados por especialistas. E não como ele, numa toca, aparado só pelo chão.
A segunda provocação foi a alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe. Uma porcaria. Não reclamou porque não era disso.
Outra provocação foi perder a metade dos seus dez irmãos, por doença e falta de atendimento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme. Era de boa paz.
Foram lhe provocando por toda a vida.
Não pode ir a escola porque tinha que ajudar na roça. Tudo bem, gostava da roça. Mas aí lhe tiraram a roça.
Na cidade, para aonde teve que ir com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu a todas. Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava onde não podia estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme.
Queria um emprego, só conseguiu um subemprego. Queria casar, conseguiu uma submulher. Tiveram subfilhos. Subnutridos. Para conseguir ajuda, só entrando em fila. E a ajuda não ajudava.
Estavam lhe provocando.
Gostava da roça. O negócio dele era a roça. Queria voltar pra roça.
Ouvira falar de uma tal reforma agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a idéia era lhe dar uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa.
Terra era o que não faltava.
Passou anos ouvindo falar em reforma agrária. Em voltar à terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No próximo ano. No próximo governo. Concluiu que era provocação. Mais uma.
Finalmente ouviu dizer que desta vez a reforma agrária vinha mesmo. Para valer. Garantida. Se animou. Se mobilizou. Pegou a enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava mais disposto a aceitar provocação.
Aí ouviu que a reforma agrária não era bem assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo ano... Então protestou.
Na décima milésima provocação, reagiu. E ouviu espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele:
- Violência, não!


 Luis Fernando Veríssimo

quarta-feira, junho 25, 2014

As coisas não dão certo. Nunca deram certo. Não foram feitas para dar certo. Nós é que temos a ambição do alinhamento e da simetria. E até inventamos deuses perfeitos, construídos à imagem e semelhança do que sonhamos.
As coisas não dão certo. Nós é que cerzimos o pano, obturamos o dente, remendamos a fronteira no mapa e inauguramos na estátua de chumbo um simulacro de ave. Queremos crer que as coisas dão certo, que as coisas agora estão dando certo e – se Deus quiser – sempre darão.
Carlos Machado

terça-feira, junho 24, 2014

          Pensamento do dia
... Toda fidelidade tem que ser espontânea.
Se for preciso um pingo de esforço para suportá-la,
Ela deixa de ser fidelidade e se transforma em martírio ...

Edson Marques
Estou sendo roubado.
Quero contar ao mundo que estou sendo roubado.
De mil formas e modos estou sendo roubado.
Sei que os ladrões me roubam por necessidade, ou quero crer que me roubem por necessidade. É doído demais pensar que são ladrões vulgares que roubam já por hábito ou simples vocação, que estão acostumados, que já se acomodaram, que me tomam por fraco ou indefeso (na verdade, sou fraco e indefeso).
Esses ladrões se valem da distância e da surpresa, de aleivosia e de noturnidade.
É um crime hediondo porque premeditado. Roubam-me porque crêem que tenho mais do que eles. Coisa, aliás, que às vezes é verdade.
Estamos sendo todos fartamente roubados.
Quadrilhas nascem como pés de alface. Passaram os pedintes a gatunos, passaram os larápios a assaltantes.
Se inquiridos, enganam.
Se interrogados, mentem.
São capazes até de devolver-te a culpa.
Passei a ser refém dos meliantes. Ameaçam sorrindo com os seus dentes brancos, dizem que passam fome e ostentam suas armas. E se não pagas, matam a quem seqüestram (que também, pode ser, é seu assecla.)
Quero que saibam todos: a miséria, a indolência, os becos sem saída, os cortiços de barro, os antigos solares com árvores gigantes, os plátanos, os caldos, as raízes.
Come quem pode. Os machetes já estão embainhados.
Mas também dos palácios saem gatunos. Organizam-se todos, falam celulares, trepidam os anexos, sacodem-se os andares. Sacerdotes ministram, ministros se refazem. Vêm também das montanhas e dos verdes mares, sobretudo em carríssimos blindados, com os seus ternos claros e gravatas, principalmente das florestas, pobres delas, também das praias, das cidades e das praças, de avenidas, à beira-mar plantadas, onde à noite pululam namorados (onde se pode eventualmente ser roubado), como num baile, como num parque, como em um banco de estado.
cuidado, cavalheiros, estais sendo roubados. se não sois os ladrões, estais sendo roubados. também, por outro lado, se os sois, mas descuidados...
dolorido e cansado, como se em minha mão estivesse uma chave abrindo a casa de antes, onde as mães dominavam. as mães, essas matronas que, ensinadas, ensinavam e só pariam filhos que pudessem guardar.
Que não se esqueça a praça e os meus amigos ouçam: estou sendo roubado. Pouco importa o motivo: importa o lucro líquido, a casa com adornos mais ou menos ridículos, o dinheiro do taxi, o dinheiro do lixo, o dinheiro da roupa e o da gasolina, o dinheiro pessoal. Em pleno socialismo, os ideais perdidos, os ideais perdidos...
E estou sendo roubado de uma esperança antiga de supor que era lícito ser limpo, de supor que era certo a um compromisso responder com cumpri-lo, de lições muito antigas de fenianos e de democratas. Quando era o carnaval, o tempo de viver desordem transitória, quando beber era uma alegria própria e o perfume dos bailes era só perfume. Os democratas...
Estou sendo roubado, enfim, de ser, de estar, de minha morte certa e indisponível, dos meus dentes na cova e os bronzes dos sepulcros (perdoai-me o mau gosto e os mais tumultos) e os relógios de pulso.
Senador, ditador, senhor, onde o esconso do maior escondido deste mundo?
Sobre o autor: Renata Pallottini

segunda-feira, junho 23, 2014

Histórias não contadas nas Escolas
Em 1532, o conquistador Pizarro aprisionou o inca Atahualpa, em Cajamarca. Pizarro prometeu-lhe a liberdade se o inca enchesse de ouro um grande quarto. Desde os quatro cantos do Império, o ouro chegou e abarrotou o quarto até o teto. Assim mesmo, Pizarro mandou matar o prisioneiro. Desde quando as primeiras caravelas apontaram no horizonte, até nossos dias, a história das Américas é uma história de traição à palavra: promessas quebradas, pactos descumpridos, documentos assinados e esquecidos, enganos, ciladas. “Te dou minha palavra” pouco mais quer dizer do que... nada! Não teríamos que aprender com os índios? Os primeiros habitantes das Américas – derrotados pela pólvora, pelos vírus, pelas bactérias e pela mentira – compartilham a certeza de que a palavra é sagrada. Um indígena mapuche, ao sul do Chile, diz: “para nós, ainda hoje, a palavra continua sendo o maior dos monumentos”. Um indígena avá-guarani, no Paraguai, diz: “a palavra vale porque é nossa alma. Não precisamos colocá-la no papel para que nos creiam. Na Guatemala, em 1995, já no período que chamam “democrático”, militares executaram a matança da comunidade indígena de Xamán. Havia uma montanha de provas que condenavam os assassinos. A secretária que transcreveu o auto processual cometeu um erro ortográfico na qualificação penal: escreveu “ejecusión” com “s” em vez de “c”. Os advogados do exército sustentaram que esse delito, escrito assim, com “s”, não existe. O promotor protestou: foi ameaçado de morte e partiu para o exílio.
 Eduardo Galeano