sexta-feira, novembro 28, 2014


Quando eu era jovem, eu pensava que com a educação seria possível mudar o mundo.
Eu buscava constantemente uma aula que pudesse despertar no coração do público uma esperança.
Eu queria mostrar uma maneira diferente de viver, com mais amizade, criatividade, sem a obrigação de perseguir o dinheiro e o poder. Ilusão fútil que eu nunca consegui alcançar. Não só a revolução não chegou, como as pessoas se tornaram cada vez mais loucas e materialistas.
Quando eu me dei conta disto eu vivi momentos difíceis pensando, pensando inclusive que minha vida era um fracasso e que todo esforço era inútil.
Mas um dia eu tive uma revelação: se não se pode mudar o mundo, pelo menos é possível mudar a si mesmo, encontrar algo em seu coração, um desejo, uma necessidade e entregar-se totalmente a ele, sem olhar para trás. Isso não é para a sociedade ou para os outros, não, é para você mesmo.
E eu fazendo esse educador que eu sou, eu encontrei essa coisa. Provocar, burlar e fazer o público rir. Isso era tudo o que eu buscava em minha vida. Por certo eu não mudava o mundo, mas os educadores nunca mudaram o mundo, passam o tempo tentando sem nunca conseguir, por isso são educadores.
Os educadores gostam do fracasso e das ações ineficazes, são perdedores alegres e isto é a verdadeira força que têm, nunca se cansam de perder. Desfrutam de cada fracasso e voltam em seguida a fracassar de novo, diluindo assim as certezas das pessoas sérias e que nunca duvidam.
Então, esse sangue que pareço ter na minha cabeça, esse sangue que tenho sobre a minha camisa, esse sangue que tenho no meu coração, esse sangue que está todo em mim é tão patético e inútil em seu simbolismo porque é sangue de um educador. Um sangue que não vem de uma grande luta ou em nome de uma causa heróica. É sangue de brincadeira, ao mesmo tempo verdadeiro e pouco importante.

Adaptado de Provocações.

quinta-feira, novembro 27, 2014

No meu bairro tem uma porção de meninos e outros não tão meninos. 
E ainda outros menos meninos ainda, que dormem nas calçadas de um jeito tão profundo,
Tão entregues ao sono que, não sentem o ardor do sol batendo neles.
Nem a dureza da pedra sobre o seu corpo.
Nem os passos dos transeuntes que quase pisam ou mesmo pisam neles.
Mas geralmente os evitam.
Nem sequer olham para eles, como se não estivessem ali.
Dizem que eles ficam assim porque eles fumam uma substância alucinógena
chamada crack.
Assim mesmo, em inglês crack.
Parecido com os futebolistas que depois viram craques.
Assim, em português craques.
Em português a substância se transforma em craques do sono.
Bem, quem sabe não estaria aí a solução para a minha insônia, porque eu não durmo.
Não, não eu não durmo.

Bairro da Luz - Centro de São Paulo
Lineu Moreira Dias





quarta-feira, novembro 26, 2014

A Morte
Esse negócio de morrer é uma grande atrapalhação. Imagine ter que interromper todos os seus projetos, tarefas, arrumações, coisas a fazer, e para sempre! Já pensou? Não como das outras vezes em que você largava tudo porque tinha ficado doente ou ia fazer uma longa viagem e depois retomava o fio de novo. Mas agora a tal viagem não tem volta. Chato, não? Agora a morte é pra já, pra qualquer minuto. Só peço mais aquele tempinho pra pôr minhas coisas em ordem e não dar muito trabalho aos que vierem depois de mim.

terça-feira, novembro 25, 2014

Tornar a sociedade segura contra roubo e incêndio e infinitamente cômoda para todo comércio e a usura são alvos inferiores, não deveriam ser perseguidos com os meios como se buscam os mais altos e mais raros, como por exemplo, a preponderância do ser humano sobre o lucro.
Friedrich Nietzsche

segunda-feira, novembro 24, 2014

A velha e o Brasil
Povo, povo, povo! O Brasil tem sorte de ainda ser povo. Povo é uma palavra com eco. Muito curiosa essa palavra, ninguém sabe direito. Mas eu posso dizer a vocês que a passageira do meu lado é viúva, sessenta anos, tem dois gatos de que gosta e dois netos de que não. Os gatos ela comanda, os netos é uma batalha. Sobre este mundo louco sabe tudo, ela vê televisão. Ela vê TV. O país não tem remédio, ninguém mais tem trabalho e os que têm não quer mais trabalhar, os políticos só roubam. Não vale a pena falar. Aproveita e volta ao sério. Sério pra ela são as telenovelas. Então ela fala sem parar. Fala sem parar. Ela fala de Big Brother, ela fala da Fazenda, ela fala do Raul Gil, ela fala do povo brasileiro. A passageira do lado é o passageiro em geral. O povo. O louvado povo com discursos do jornal. A que começar do ovo! Porque alguma coisa andou mal

domingo, novembro 23, 2014

Pouco a pouco o silêncio me fez um Robinson assustadiço, sem roupa, mas sem fome, sem sede porque pelos poros a luz mineral nutria e umedecia, mas pouco a pouco o planeta se despencava de minha língua, e errei sem idioma, escuro pelas areias do silêncio. Oh, solidão espacial do silêncio! Se desfaz o ruído do coração, quando sobressaltado ouviu o silêncio debaixo de outro silêncio maior, eu fui emagrecendo até ser somente silêncio naquele bairro do céu onde eu caí e fui enterrado por um alvo silencioso, por um grande rio de esmeraldas que não sabiam cantar.

Pablo Neruda