quarta-feira, dezembro 31, 2014

Ultimo dia de 2014 - Nota de falecimento

Morreu ontem a mãe da Barbie, a boneca adolescente. A filha que nunca será órfã, pequeno duende de sutiã 38 e de 33 polegadas de altura. 
Morreu a mãe da Barbie, que faz balé, esqui, patins em linha e todos os esportes radicais. Morreu a mãe da Barbie, que jamais a viu padecer de uma gravidez adolescente, nem desgosto, nem fome. 
Morreu a mãe da Barbie, que vai a todas as festas de gala e enegreceu há uns anos, qual Naomi Campbel, para ser consumida pela boa consciência racial do ocidente. 
Morreu a mãe da Barbie, morreu cedo demais para inventar uma Barbie de burka, ou com explosivos escondidos no cinto.

terça-feira, dezembro 30, 2014

Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes. 
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjetividade objetiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.  
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?
 Álvaro de Campos

segunda-feira, dezembro 29, 2014

Todas as cartas de amor são Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor, Como as outras, Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,  Têm de ser Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram Cartas de amor
É que são Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia Sem dar por isso
Cartas de amor Ridículas.
A verdade é que hoje As minhas memórias Dessas cartas de amor
É que são Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas, Como os sentimentos esdrúxulos, São naturalmente
Ridículas.)
Álvaro de Campos

domingo, dezembro 28, 2014

Vejam o que saiu no jornal há poucos dias: Morte de fumante ajuda economia, diz Philip Morris. 
A companhia americana de cigarros disse ao governo da República Tcheca que a morte prematura de fumantes por câncer tem um impacto positivo nas finanças do país. Segundo a Philip Morris a cada fumante morto o governo deixa de gastar dinheiro na área de saúde e livra-se de pagar aposentadoria. Além disso, o morto abre uma vaga no mercado de trabalho em favor de um desempregado. 
Essa talvez seja a maior e mais cínica provocação dos últimos e dos próximos anos! Ou será que eles estão certos? 
Será que é preciso morrer pra resolver as coisas? Bem, tem outra provocação: o espaço tão pequeno que os jornais e a TV abriram para esse assunto.

22/07/2001

sábado, dezembro 27, 2014

Eu não invejo a vastidão do mundo. Que o mundo não possa compreender-me, não depende de mim. Quem sabe só eu compreenda.  Que a nossa janela comum não quer dizer que eu lhe pertença. O mundo me pertence sim, mas nossos olhares diferem.  Ele apenas me supõe, eu, EU,eu o vejo

sexta-feira, dezembro 26, 2014

Instruções para dar corda no relógio 


Lá no fundo, lá no fundo está a morte, não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, como um moleque, o tempo vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, o perfume do pão, a sombra de uma mulher. 
Que mais você quer, o que mais você quer?
 Que mais você quer, o que mais você quer? 
Amarre-o depressa a seu pulso, deixe-o bater em liberdade. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pôde ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o sanguefrio de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se corrermos, e chegarmos antes nós compreenderemos que a morte não tem a menor importância.
Julio Cortázar  

quinta-feira, dezembro 25, 2014

Para quem pensa que o Natal e do Papai Noel 
# Fica a dica

Monólogo do Natal 
                                                                                 Aldemar Paiva

Eu não gosto de você, Papai Noel!
Também não gosto desse seu papel
de vender ilusões à burguesia.
Se os garotos humildes da cidade
soubessem do seu ódio à humildade, 

jogavam pedra nessa fantasia. 

Você talvez nem se recorde mais.
Cresci depressa, me tornei rapaz, 

sem esquecer, no entanto, o que passou.
Fiz-lhe um bilhete, pedindo um presente 

e a noite inteira eu esperei, contente.
Chegou o sol e você não chegou. 


Dias depois, meu pobre pai, cansado, 
trouxe um trenzinho feio, empoeirado, 
que me entregou com certa excitação.
Fechou os olhos e balbuciou: 

“É pra você, Papai Noel mandou”.
E se esquivou, contendo a emoção. 


Alegre e inocente nesse caso, 
eu pensei que meu bilhete com atraso, 
chegara às suas mãos, no fim do mês.
Limpei o trem, dei corda, 

ele partiu dando muitas voltas,
meu pai me sorriu e me abraçou pela última vez. 


O resto eu só pude compreender quando cresci
e comecei a ver todas as coisas com realidade.
Meu pai chegou um dia e disse, a seco: 

“Onde é que está aquele seu brinquedo?
Eu vou trocar por outro, na cidade”. 


Dei-lhe o trenzinho, quase a soluçar
como quem não quer abandonar 
um mimo que nos deu, quem nos quer bem, 
disse medroso: “O senhor vai trocar ele?
Eu não quero outro brinquedo, eu quero aquele.
E por favor, não vá levar meu trem”. 


Meu pai calou-se e pelo rosto veio descendo um pranto que, eu ainda creio,
tanto e tão santo, só Jesus chorou!
Bateu a porta com muito ruído, mamãe gritou

ele não deu ouvidos, saiu correndo e nunca mais voltou. 

Você, Papai Noel, me transformou num homem que a infância arruinou, sem pai e sem brinquedos.
Afinal, dos seus presentes, não há um que sobre
para a riqueza do menino pobre
que sonha o ano inteiro com o Natal.

Meu pobre pai doente, mal vestido, 

para não me ver assim desiludido, 
comprou por qualquer preço uma ilusão,
num gesto nobre, humano e decisivo, 
foi longe pra trazer-me um lenitivo, 
roubando o trem do filho do patrão. 

Pensei que viajara,
no entanto 
depois de grande,
minha mãe, em prantos,
contou-me que fôra preso
e como réu, ninguém a absolvê-lo se atrevia.
Foi definhando, até que Deus, um dia, 

entrou na cela e o libertou pro céu.
No Natal os filhos crescem
Os filhos crescem. Aquela coisa mais querida do mundo de repente tem opinião, derrama por querer a sopa toda, não para de chorar de pura raiva.
Os filhos crescem. Eles querem entrar no grupo que os não quer, pedem briga, dão gritos pela rua a clamar eu sou eu por não saber quem são.
Os filhos crescem e ficam diante de si como num ringue. Vão se bater até beijar a lona? Se duvidarem, vão.
Os filhos crescem. Desenha-se a existência em cada um, os pais ficam olhando, que fazer? E mesmo quando acertam, o que é que muda?
Os filhos crescem e não adianta querer dar tudo, nem a alma. Eles desejam outras almas, eles são outros.
Os filhos crescem. Sem ler nossos romances para eles, se metem em capítulos inéditos. Já não são nós, se sentem vitoriosos. E continuamos eles...
 Paulo Hecker

quarta-feira, dezembro 24, 2014


Mude - Edson Marques



Ó ideal,
Que estás no meu céu interior, Verdade viva, Que faz minha alma Imortal,
Para que tua tendência Evolutiva. Seja realizada,
Para que teu nome, Se afirme pelo trabalho, Para que tua revelação
Seja manifestada a cada Espetáculo,
A cada espetáculo concede-me A ideia criadora,
Que assim como ela está Entendida no meu coração Seja entendida no meu corpo.
Ó ideal, Preserva-me dos reflexos Da matéria,
Que eu compreenda Que o sofrimento benfeitor Está na origem da minha Encarnação.
Livra-me do desespero E que teu nome seja Santificado
Pela minha coragem  Na prova.
Ó ideal, Faze com que eu Não diferencie
O fracasso do sucesso.
E perdoa a minha Dificuldade de comunicação,
Assim como eu perdoo Os que não têm ouvidos
De ouvir Nem olhos de ver.
Ó ideal, Destrói meu orgulho, Que poderia afastar-me Da tua luz-guia,
Nutre meu devotamento, Porque és,
Ó ideal, A realeza, o equilíbro, a força Da minha intuição.
Plínio Marcos

terça-feira, dezembro 23, 2014

Tédio
Você sabe tão bem quanto eu que uma das principais causas do tédio é a estreiteza de nosso destino.
Todas as manhãs despertamos iguais ao que éramos na véspera.
Ser eternamente o mesmo é insuportável para os espíritos refinados pela reflexão.
Sair do próprio eu é um dos sonhos mais inteligentes que um homem pode ter.
 Julien Green

segunda-feira, dezembro 22, 2014

Estou procurando. Estou procurando. Estou tentando entender.Tentando passar a alguém o que vivi até agora, e não sei a quem. Mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi. Confesso que tenho medo dessa desorganização profunda que existe em mim..
 Clarice Lispector

domingo, dezembro 21, 2014

O amor é horrível em si mesmo porque não tem regras. E mesmo você, que hoje não está sentindo nada de horror, vai sentir esse horror.

sábado, dezembro 20, 2014

Especular sobre os devaneios das outras pessoas sempre vai te fazer pequeno. Pensar, simples e involuntariamente, já esmaga muito do que você acredita, criando outras certezas que serão esmagadas um pouco depois.
É difícil acreditar em algo que exponha o que você realmente é. É difícil, impossível, ser uma coisa só. Talvez por isso algumas pessoas falem pouco, valorizando o poder do silêncio.
Talvez por isso algumas pessoas falem e riam tanto, mostrando a coragem que querem mostrar que tem, de ser... Seja lá o que for.
Mentimos pra nós mesmos, muitas vezes, só para nos convencermos de que somos tal coisa, de que nunca mudamos ou de que agora somos totalmente diferentes.
A verdade é que a nossa existência depende essencialmente da existência dos outros.
Nós somos tudo o que vimos, tudo do que gostamos, tudo o que fizemos e que normalmente não faríamos. Nós somos aquele calafrio que se sente por alguém com quem você nunca conversou e que nem faz seu tipo, aquela alegria que vem sem explicação, durante o dia mais sem graça, o envolvimento com as personagens de um livro.
Ser é como amar, como ter esperança, essas coisas que não dão pra tocar e das quais a gente vive apanhando.
Thiago Cunha

sexta-feira, dezembro 19, 2014

Devagar, o tempo transforma tudo em tempo. O ódio transforma-se em tempo. O amor transforma-se em tempo. A dor transforma-se em tempo. Os assuntos que julgamos mais profundos, mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis, transformam-se devagar em tempo. Mas, por si só, o tempo não é nada, a idade não é nada, a eternidade não existe.

José Luís Peixoto

quinta-feira, dezembro 18, 2014


Todo o meu esforço canalizo para a vida. Não para o equilíbrio, não para as certezas. Sigo suportando nas costas todo o peso da desesperança, pois que a esperança, é ridículo, dramático, que a humanidade ainda precise dela.
Esperança em quê? Em remédios que curem?... Em poemas que se dão de mão em mão? E as cartas sem resposta? E os becos sem saída? E a nova hipocrisia?
E o deus-dinheiro que nos espreita a cada esquina?... E a África? E a América Latina?...
E todas essas universidades e tantos analfabetos?...
Toda gente sabe a extensão da verdade: surpreendendo a paisagem esfomeada, o gatilho já não precisa do dedo de ninguém.
José Luis Peixoto

quarta-feira, dezembro 17, 2014


Familia - Quem tem Razão

Buscar harmonia é muito difícil, nem sempre faço o que quero, ou seja, faço mas as pessoas não acham que, o que eu fiz foi o certo....
Hoje acordei, sai sem compromisso, andando na avenida São João tentando não pisar nas fezes e o lixo que se acumula no centro velho, velho centro entregue a aventureiros que querem o poder... pensando se a vida fosse ...não... não vou desviar do assunto, família...
A mãe faz tricô
O filho vai à guerra
Acha isso tudo muito natural, a mãe
E o pai que faz o pai?
Faz Negócios
A mulher faz tricô
O filho luta na guerra
Ele negócios
Acha isso tudo muito natural, o pai
E o filho e o filho
o quê que o filho acha?
Nada absolutamente nada acha o filho
Acham isso muito natural, o pai e a mãe
Quer dizer,

O comércio não conhece a morte.

Jacques Prévert

terça-feira, dezembro 16, 2014

"Feminina"


Eu queria ser mulher para poder me estender ao lado dos meus amigos, nos cafés.
Eu queria ser mulher para poder passar pó de arroz pelo meu rosto diante de todos, nos cafés.
Eu queria ser mulher para não ter que pensar na vida...
Conhecer muitos velhos, a quem eu pedisse dinheiro.
Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro falando de modas, fazendo fofocas, muito entretida.
Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios, aguçá-los ao espelho antes de me deitar.
Eu queria ser mulher para que me fosse bem todos esses ílios.
Esses ílios que no homem, francamente não se pode desculpar.
Eu queria ser mulher para ter muitos amantes, e enganá-los, a todos, mesmo ao predileto.
Como eu gostaria de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto, o mais bonito.
Enganá-lo com um rapaz gordo, feio e de modos extravagantes.
Eu queria ser mulher para excitar quem me olha-se.
Eu queria ser mulher para poder me recusar.
  Mário de Sá-Carneiro

segunda-feira, dezembro 15, 2014


Há algo de suicida na maneira em que nós, humanos, tratamos as crianças. Nós a deixamos estacionadas na frente do televisor para que engulam horas e horas de programas estúpidos e de violência gratuitas.

elas saem imaturas e inadaptáveis para a nossa sociedade.
As crianças são o pedaço mais frágil desta sociedade que temos. São as primeiras a morrer de fome. As mais maltratadas pelas guerras. Nós as escravizamos, a torturamos, a prostituímos.
Independente do horror e da indecência que isto pressupõe, nós estamos construindo um futuro de monstros. Este inferno deixa pegadas que não desaparecem.

domingo, dezembro 14, 2014


Esbarram em mim, nem noto. 
Eu vejo pelas costas: mulato alto, roupas gastas, mas moda jovem. Cabelo rente, boné. Ele correu ao perceber alguém do outro lado da rua. Um branco, classe média, os dois com 17 anos. Talvez colegas no curso pré-vestibular ali perto. Sem dúvida, amigos. Mulato e branco, o Brasil. E ali, mais que o Brasil, o homem. Falam-se com uma felicidade que acende um ao outro. E essa felicidade acende até a mim. Tem tudo para se dizer e não podem parar de sorrir, desde que se viram. Eu também sorrio, sem intenção, pelo que sentem sem precisar saber que na amizade está a vida.

sábado, dezembro 13, 2014

O que sei 
Se eu soubesse algo que me fosse útil, mas prejudicial à minha família, eu rejeitaria. Se eu soubesse algo que fosse útil à minha família, mas prejudicial ao meu país, eu esqueceria. Se eu soubesse algo que fosse útil ao meu país, mas prejudicial à humanidade, eu consideraria esse algo um crime.
 Charles de Montesquieu

sexta-feira, dezembro 12, 2014

José
 E agora, José?
A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, você?
Você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama protesta, e agora, José?Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José?
E agora, José? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio - e agora?  
Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora? 
Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse, a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse…
Mas você não morre, você é duro, José! Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José! José!
José, pra onde?

quinta-feira, dezembro 11, 2014

Mas eu não sabia, eu não sabia. Não se pode saber tudo. Mesmo o que creio saber, tem horas, que não creio.

quarta-feira, dezembro 10, 2014

Li num texto sobre o Enrico Fermi, o físico italiano que foi um dos pais da bomba atômica. Um dia resolveu fazer uma alteração no processo que usava para induzir a radioatividade usando neutrons (ou coisa parecida, sou meio fraco em física, na verdade sou contra).

O chumbo não estava dando certo, em vez de chumbo usaria outra coisa. Parafina, decidiu, sem pensar. Foi a decisão mais importante da sua vida, até ali. A colisão com o núcleo de hidrogênio da parafina fazia diminuir a velocidade dos neutrons, e todos sabem o que isso significa.

Espero que saibam, porque eu não sei. O importante é que os nêutrons vagarosos foram os responsáveis, pelo Prêmio Nobel que Fermi ganhou em 1938.

Ele era, segundo o texto, ‘o mais racional e o menos impulsivo dos cientistas’, mas escolhera a parafina num impulso. Tivera a intuição da parafina.

A história da ciência está cheia de sacadas do mesmo tipo, de manifestações do que outro cientista, Michael Polanyi, chama de ‘conhecimento tácito’, ou o que nós sabemos sem saber que sabemos.

Albert Einstein – outro que intuiu e ‘inventou’, muito mais do que deduziu racionalmente ele dizia que tinha um sentimento na ponta dos dedos, que substitui a percepção convencional e a racionalização.

Muitas vezes é a ponta dos dedos que sabe o que nós não sabemos que sabemos. Einstein, aparentemente, consultava a ponta dos seus dedos com frequência.

Tudo isto a respeito de que? Não sei. Eu talvez esteja querendo dizer que se deva recorrer a ponta dos dedos para entender o que se passa na política brasileira hoje, já que os órgãos com que tradicionalmente se avalia a realidade nacional não estão dando conta.

Ou está havendo uma grande mudança disfarçada de nada ou um grande nada disfarçado de mudança. Por aí. Ou não. Se eu não sei nem o que sei, vou saber o que estou dizendo?
 Luiz Fernando Veríssimo

terça-feira, dezembro 09, 2014

Sabe aqueles ambulantes que saíam pela cidade a afiar as facas?
Eu gostava de seu assobio estridente, das chispas de fogo fabricadas pelo metal contra metal, dos olhos infantis que admiravam o relampejar, das cozinheiras e arrumadeiras que, da janela, piscavam para o portuga, padroeiro dos degoladores de galinha.
... o afiador de facas, o pipoqueiro, o sorveteiro, o baleeiro, o leiteiro
... profissões populares que se foram com a rapidez que trouxe o automóvel e o avião, esses aparelhos assassinos do século!
Fui reler o poema de Drummond. “Que século, meu Deus!” Diziam os ratos que começavam a roer o edifício.
 
Graciliano Ramos

segunda-feira, dezembro 08, 2014

Frio. Já é se dar o direito de ser frio. Que dia.
Eu tento passar por ele incógnito. Me entra nos ossos.
É uma questão pessoal. Eu finjo que o frio não me ofende. Talvez se emende, porque o frio tem a delicadeza de um punhal.

domingo, dezembro 07, 2014


Eu olho Teresa, vejo-a sentada aqui a meu lado. A poucos centímetros da mim. A poucos centímetros, muitos quilômetros. Por que essa impressão de que precisaria de quilômetros para medir a distância, o afastamento em que a vejo nesse momento?
Eu olho Teresa como se olhasse o retrato de uma antepassada que tivesse vivido em outro século. Ou como se olhasse um vulto em outro continente, através de um telescópio. Vejo-a como se a cobrisse a poeira tenuíssima ou o ar quase azul que envolvem as pessoas afastadas de nós muitos anos e muitas léguas.
Posso dizer dessa moça ao meu lado que é a mesma Teresa que durante todo o dia de hoje, por efeito do gás do sonho, eu senti pegada a mim?
Esta é a mesma Teresa que na noite passada eu conheci em toda intimidade? Posso dizer que a vi, falhei-le, posso dizer que a tive em toda intimidade? Que intimidade existe maior que a do sonho? A desse sonho que ainda trago em mim como um objeto que me pesasse no bolso?
Ainda me parece sentir o mar do sonho que inundou meu quarto. Ainda sinto a onda chegando à minha cama. Ainda me volta o espanto de despertar entre móveis e paredes que eu não compreendia pudessem estar enxutos. E sem nenhum sinal dessa água que o sol secou, mas de cujo contacto ainda me sinto friorento e meio úmido (penso agora que seria mais justo, do mar do sonho, dizer que o sol o afugentou, porque os sonhos são como as aves, não apenas porque crescem e vivem no ar).
Teresa aqui está. Teresa aqui está, ao alcance de minha mão, de minha conversa. Por que, entretanto, me sinto sem direitos fora daquele mar? Ignorante dos gestos, das palavras?
O sonho volta, me envolve novamente. A onda torna a bater em minha cadeira, ameaça chegar até a mesa. Penso que, no meio de toda essa gente de terra, gente que parece ter criado raízes, como um lavrador ou uma colina, eu sou o único a escutar esse mar. Talvez Teresa...
Talvez Teresa... sim, quem me dirá que esse oceano não nos é comum?
Posso esperar que esse oceano nos seja comum? Um sonho é uma criação minha, nascida de meu tempo adormecido, ou existe nele uma participação de fora, de todo o universo, de uma geografia, sua história, sua poesia?
O arbusto ou a pedra aparecida em qualquer sonho pode ficar indiferente à vida de que está participando? Pode ignorar o mundo que está ajudando a povoar? É possível que sintam essa participação, esses fantasmas, essa Teresa, por exemplo, agora distraída e distante? Há algum sinal que faça compreender termos sido, juntos, peixes de um mesmo mar?
De onde me veio a idéia de que Teresa talvez participe de um universo privado, fechado em minha lembrança, desse mundo que através de minha fraqueza eu me compreendi ser o único onde será possível cumprir os atos mais simples, como por exemplo caminhar, beber um copo de água, escrever meu nome, nada, nem mesmo Teresa. Teresa.

João Cabral de Melo Neto

sábado, dezembro 06, 2014

Início dos anos sessenta, no dia em que os franceses evacuaram Argel, abandonando a cidade à sua própria sorte. A população invade as ruas e chega, em sua caminhada alegre e errante, à estação de televisão. Os estúdios escancarados e o equipamento esparso não queriam dizer nada à multidão. Até que, sem querer, alguém liga uma câmera e uma imagem surge na tela do monitor. Os manifestantes reconhecem seus rostos, divertidos e encorajados e começam a brincar de imitar a televisão. Logo deduzem que a imagem vista no monitor era vista na cidade e, quem sabe, em toda Argélia. Eles podiam, enfim, se mostrar aos outros. Então, cantam, dançam e dizem poesias freneticamente!...
A festa desenfreada termina com a chegada da polícia e do exército. Os soldados desligam as câmeras, expulsam a multidão e, para afirmar seu domínio sobre a televisão pública, lacram os estúdios. E terminou assim a única experiência de que se tem notícia de uma televisão autenticamente popular.
 Andrzej Wajda

sexta-feira, dezembro 05, 2014

É espantosa a velocidade com que avança o mundo. Não se sabe bem pra onde. Pra tragédia talvez, mas que avança, avança.
Imagine o que é pra mim, que sou do tempo em que o primeiro ministro da Dinamarca ia ao palácio de bonde, ler nos jornais sobre o smart truck, é, smart truck. Caminhão esperto em português. Smart truck é caminhão esperto. É um carro desenvolvido pelo exército americano para proteger autoridades de presumíveis ataques terroristas. Pura tecnologia de guerra. Tem de tudo para mandar pelos ares os que se aproximarem dos poderosos. Seu grande charme, que ainda um dia conquistará os mercados do terceiro mundo, é um dispositivo a laser que lança granadas pelo teto, a uma distância de até quinhentos metros. Uma verdadeira catapulta eletrônica no sentido inverso. Quinhentos metros!
Para as necessidades de nosso consumidor moderno, daquelas pessoas determinadas que sabem o que querem, quinhentos metros até que é muito, pois é a uma distancia muito menor que se encontram essas crianças que pedem migalhas nas ruas.

quinta-feira, dezembro 04, 2014

Não, não é cansaço…
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
É um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo…
Não, cansaço não é…
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.
Não. Cansaço por quê?
É uma sensação abstrata
Da vida concreta —
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como…
Sim, ou por sofrer como…
Isso mesmo, como…
Como quê?…
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

 Álvaro de Campos

quarta-feira, dezembro 03, 2014

Hoje e Sempre
A virtude deve desaparecer de novo e tornar-se inocência.

terça-feira, dezembro 02, 2014

Índios
Os índios fascinam a gente porque são anteriores ao tempo.
Ao que parece, eram nômades natos.
Banhistas contumazes. Mulherengos.
Como todos os povos que atingiram um alto nível de civilização, os índios eram irrevogavelmente distraídos.
Não costumavam trabalhar. Já que não lhes apetecia comprar nem vender, qualquer trabalho resultava-lhes supérfluo.
E os índios desprezavam o supérfluo, ao contrário de nós próprios que, fabricando diariamente milhares de objetos, acabamos por desembocar na guerra, máquina de matar homens e de... Incinerar objetos.
É um erro pensar que o índio prefere a nossa civilização!
Antonio Callado
Índios
Legião Urbana
Quem me dera ao menos uma vez
Ter de volta todo o ouro que entreguei a quem
Conseguiu me convencer que era prova de amizade
Se alguém levasse embora até o que eu não tinha

Quem me dera ao menos uma vez
Esquecer que acreditei que era por brincadeira
Que se cortava sempre um pano de chão
De linho nobre e pura seda

Quem me dera ao menos uma vez
Explicar o que ninguém consegue entender
Que o que aconteceu ainda está por vir
E o futuro não é mais como era antigamente

Quem me dera ao menos uma vez
Provar que quem tem mais do que precisa ter
Quase sempre se convence que não tem o bastante
Fala demais por não ter nada a dizer

Quem me dera ao menos uma vez
Que o mais simples fosse visto
Como o mais importante
Mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente

Quem me dera ao menos uma vez
Entender como um só Deus ao mesmo tempo é três
E esse mesmo Deus foi morto por vocês
Sua maldade, então, deixaram Deus tão triste

Eu quis o perigo e até sangrei sozinho
Entenda
Assim pude trazer você de volta pra mim
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do início ao fim

E é só você que tem a cura pro meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi

Quem me dera ao menos uma vez
Acreditar por um instante em tudo que existe
E acreditar que o mundo é perfeito
E que todas as pessoas são felizes

Quem me dera ao menos uma vez
Fazer com que o mundo saiba que seu nome
Está em tudo e mesmo assim
Ninguém lhe diz ao menos obrigado

Quem me dera ao menos uma vez
Como a mais bela tribo
Dos mais belos índios
Não ser atacado por ser inocente

Eu quis o perigo e até sangrei sozinho
Entenda
Assim pude trazer você de volta pra mim
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do início ao fim

E é só você que tem a cura pro meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi

Nos deram espelhos e vimos um mundo doente
Tentei chorar e não consegui

segunda-feira, dezembro 01, 2014

Dias de luta.
Só depois de muito tempo
Fui entender aquele homem
Eu queria ouvir muito
Mas ele me disse pouco...
Quando se sabe ouvir
Não precisam muitas palavras
Muito tempo eu levei
Prá entender que nada sei
Que nada sei!...
Só depois de muito tempo
Comecei a entender
Como será meu futuro
Como será o seu...
Se meu filho nem nasceu
Eu ainda sou o filho
Se hoje canto essa canção
O que cantarei depois?
Cantar depois!...
Se sou eu ainda jovem
Passando por cima de tudo
Se hoje canto essa canção
O que cantarei depois?...
Só depois de muito tempo
Comecei a refletir
Nos meus dias de paz
Nos meus dias de luta...
Se sou eu ainda jovem
Passando por cima de tudo
Se hoje canto essa canção
O que cantarei depois?...(2x)
Cantar depois!...
Esta estrada onde eu moro, entre duas voltas do caminho, Interessa mais que uma avenida urbana.
Nas cidades todas as pessoas se parecem. Todo mundo é igual. Todo mundo é toda a gente.
Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua alma.
Cada criatura é única. Até os cães.
Estes cães da roça até parecem homens de negócios: Andam sempre preocupados.
E quanta gente vem e vai!
E tudo tem aquele caráter impressivo que faz meditar: Enterro a pé ou a carrocinha de leite puxada por um bodezinho manhoso.
Nem falta o murmúrio da água, para sugerir, pela voz dos símbolos, Que a vida passa! Que a vida, a vida passa!
E que a mocidade vai acabar.

 Manuel Bandeira

domingo, novembro 30, 2014

Um dia desses...num desses encontros casuais eu separo um tempinho e ponho em dia todos os choros que não tive tempo de chorar, sonhe todos os sonhos que não tive tempo de sonhar, e ame tudo que não tive tempo de amar...

Ideilson

Ilha das Flores 2012


No dia 21 de abril, o Atos foi mais uma vez à Ilha das Flores, desta vez para participar de um censo social para conhecer melhor a realidade dos moradores da ilha, local de atuação do IDE – Instituto de Educação e Desenvolvimento Humano, Assim, nós do Atos juntamente com outros voluntários, visitamos várias residências, conversando com os moradores e levantado dados.
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As “atas” se preparando para entrevistar os moradores da Ilha
A Ilha carece de educação, saúde, saneamento básico, posto de saúde, mais horários de ônibus, e assim por diante. Mas no meio desses problemas generalizados, existem pessoas reais que estão sofrendo muito. Fomos
grandemente impactados, ao nos deparamos com a realidade dessas pessoas em primeira mão. Visitamos algumas casas que só tinham um cômodo. Em uma delas moravam a mãe e 4 crianças pequenas, e como só havia um colchão, a mãe jogava as roupas no chão para que todos pudessem em que dormir. Também ficamos pensando como seria passar o inverno ali, visto que as frestas nas paredes são muitas e o telhado é precário. Numa das casas em que estávamos, chovia pra dentro através de goteiras, e nos molhamos praticamente o mesmo que se estivéssemos do lado e fora. Além disso, os terrenos são muito sujos e as necessidades fisiológicas são jogadas atrás da casa, pois não há banheiros nas residências. Muitas pessoas adoecem como conseqüência da miséria e da falta de higiene. A educação também deixa muito a desejar, conhecemos uma menina na quinta série que além de não saber ler, não sabia a data próprio aniversário.
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Nesta casa de uma peça única moram, uma vó, três filhas, um genro e uma netinha.
A visita à Ilha das Flores foi uma experiência marcante, sem dúvidas, ao entramos em contato com uma realidade tão distante da nossa. Nas palavras de uma aluna: “Nunca me deparei com alguém que tem AIDS. Isso me deixou um pouco chocada e me deu uma vontade grande de ajudar essas pessoas, e falar palavras de conforto, de cuidar daquelas crianças que foram abusadas sexualmente; A cada experiência que tenho vivenciado no Atos tenho me importado mais com as pessoas que precisam, saído um pouco do meu mundinho egoísta.” E nas palavras de outra: “Fiquei com a sensação de impotência, e a certeza que o evangelho precisa ser anunciado. […] Deus pode mudar qualquer situação, mas Ele deseja nos usar para isso. E como é bacana ver o pessoal do IDE que tanto se esforça para mudar a realidade da Ilha. Enquanto estava lá, dentro de uma das casas, vi que minha ingratidão é brutal, de grande profundidade. Quantas vezes murmurei sem ter motivos significativos pra isso. Será mesmo que posso reclamar? Que Deus tenha misericórdia de mim.”
Fontehttp://doatos.wordpress.com/2012/05/04/ilha-das-flores-2012

As flores morrem

Ilha das Flores é um curta-metragem de cerca de 10 minutos, escrito e dirigido, em 1989, pelo cineasta Jorge Furtado.