Cenas de uma sociedade
Maria não consegue dormir. Sua cabeça não para e a carne está inquieta. É noite de chuva. A televisão está ligada, mas todas as atenções estão voltadas à sucessão de ideias e imagens que passam pelo seu corpo. Pensa nos filhos que nunca existiram; no abandono que sofreu dos pais, ao ser doada para um família mais pobre que a sua quando tinha apenas onze anos; nos amores que recusou por medo; na perda, por puro preconceito, do único homem que realmente amou; nos vícios que acumulou; na repartição pública em que passa parte essencial da sua vida; no aborto da sua irmã adotiva; na morte de sua mãe biológica; na doença cardíaca do pai; na fobia constante que sente ao comer; na morte; na angústia de estar sempre só. A cabeça dispara. Parece uma metralhadora de acusações. Ela quer dormir. Não consegue calma alguma. Há alguns meses parou de tomar Rivotril porque domou a síndrome do pânico. Não tem mais nenhum comprimido nos armários. Na televisão passa uma sessão de cinema nacional. Por que sempre escolhem os piores filmes? Volta a fervilhar sua mente. Os brancos da parede ficam mais brancos nestas noites. Pensou em ligar para alguém. Sentiu que seria meio inconveniente telefonar na alta madrugada. Que droga de vida! Lamenta não ter um amigo, um único ser com que pudesse comungar alguma intimidade não fugaz. As horas avançam e Maria continua acelerada. Um infarto, um câncer, um tombo no banheiro, um atropelamento, um tijolo sobre a cabeça, uma bactéria, um assalto, uma infecção aguda e generalizada, um afogamento repentino, um tiro nas têmporas, uma dose excessiva de comprimido. Maria pensa na morte de várias maneiras, mas não tem coragem de ir adiante. Desespera a vida; desespera mais a ideia do desaparecimento. Maria nunca alcançou a doçura. Até seu sorriso é negro. O brilho dos olhos se perde nas imensas e negras olheiras. Ela admite a si mesma que assim não dá mais, que se faz necessário achar uma rota de fuga, uma alternativa para tanto desespero. Os pássaros começam a cantar no pé de limoeiro que plantou na janela de seu quarto. A claridade começa a tingir o espaço. A chuva fina escorre pela vidraça. Maria levanta com a cabeça pesada e o corpo alquebrado. Já na cozinha, começa a fazer o café da manhã. Uma imensa xícara de café preto para espantar o cansaço. No quarto, a televisão anuncia que a semana toda será de chuva, que o índice de desemprego aumentou, que uma mãe atirou seu filho, com apenas um ano e três meses, do viaduto central. Maria olha para dentro da xícara de café. Fica alguns minutos se procurando dentro da negritude matinal.
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